'Você manda talvez na sua casa, com as suas negas', diz vereador

Estado de São Paulo é palco de mais uma possível fala racista vinda de um parlamentar; caso aconteceu na Câmara de São Roque

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Por Carlos Martins

'Eu como advogado não conseguiria o defender. Eu só consigo ver racismo', essas foram as palavras do advogado Antonio Souza de Carvalho ao analisar imagens da última Sessão Ordinária do Município de São Roque, no interior do estado de São Paulo.

Quem não se lembra do caso de Camilo Cristófaro, o primeiro vereador de São Paulo a perder mandato por racismo? Pois bem, mesmo em contextos diferentes, outra câmara municipal do estado foi palco de mais uma fala com possível cunho racista. Dessa vez, na Estância Turística de São Roque. Durante a sessão do último dia 10 de dezembro, o vereador Rogério Jean da Silva, o Cabo Jean (PL), em discussão com outro parlamentar da Casa, proferiu a seguinte frase: "você manda talvez na sua casa, com as 'suas negas'. 

"Frases como essas são muito infelizes, é muito racista em nosso momento atual. 'Suas negas' faz referência à escravidão, diminuição de pele, de etnia. Não tenho dúvida que o contexto e a fala refletem uma postura racista", ressaltou o advogado e cientista político.

Sobre uma possível condenação e as consequências para o vereador, o advogado acredita que a Câmara Municipal de São Roque pode tomar alguma decisão, futuramente, mesmo já estando em recesso parlamentar. "A imunidade parlamentar não protege racista. Existe caso em que determinada câmara municipal, em situações similares, optou em cassar o vereador. Deve existir uma providência que corresponda pela gravidade da situação. A Câmara poderia mandar um recado para a sociedade de São Roque, de que este tipo de comportamento não é aceito. Mesmo com o fim do ano e recesso, simplesmente deixar esse assunto morrer, não é a melhor resposta de uma Casa de Leis. Além disso, a situação também pode ter uma consequência criminal, depende do Ministério Público agir", finalizou.

Denúncia protocolada

Diante do ocorrido na Casa Legislativa, uma representação contra o vereador Cabo Jean foi assinada e apresentada ao presidente da Câmara Municipal, vereador Rafael Tanzi. Entre os denunciantes, a professora do Instituto Federal de São Roque e integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), Vivian Delfino Mota.

Ao Correio da Manhã, Vivian ressaltou que Cabo Jean precisa ser punido pela fala em plenário. Segundo ela, o parlamentar não foi apenas racista, mas também misógino. "Por que afirmamos que essa fala do vereador Jean é racista e misógina? Primeiramente, porque é uma fala que representa o período escravocrata do Brasil. É porque as mulheres negras e indígenas eram vistas simplesmente como objetos, como seres que não tinham vontade, voz ou vez. Quando o vereador Jean diz 'com as suas negas', ele está se referindo que essa parte da população (mulheres negras) podem ser tratadas de maneira violenta e de uma forma não civilizada. O que o vereador quer nos dizer, é o que nos serve;  o tratamento violento, é destinado para nós, mulheres negras. Outra questão que é importante analisar, é exatamente a expressão 'aqui não... talvez na sua casa, com as suas negas.' E uma coisa que eu aprendi, é que as palavras têm sentido; elas não são usadas de maneira aleatória. Com essa fala, o vereador demonstra que 'as negas' não estão representadas dentro da Câmara de Vereadores. Apesar que no momento de pedir o voto, eu tenho a certeza que ele apertou a mão e abraçou muitas 'negas' para conseguir se eleger", declarou Vivian.

Também assinam a denúncia, o professor Rodrigo Umbelino da Silva, e o vereador Paulo Rogério Júnior.

'Fora de contexto'

Aprovado em outras Câmaras Municipais e também sob forte crítica popular, o pagamento do 13º salário para vereadores era um dos assuntos debatidos durante a sessão. Além de mudanças no Regimento Interno da Casa. Imediatamente após a fala do parlamentar, uma internauta, que acompanhava a sessão pela internet, fez um comentário já o acusando de racismo.

Dias depois, Cabo Jean fez uma transmissão pelas redes sociais para falar sobre o caso. "Durante a minha discussão, fiz uma fala que, ontem quando publicada, pelo vereador que nunca trabalhou na vida, pelo vereador que não tem uma carteira de trabalho assinada, que é o vereador Paulo Juventude, ele traz uma publicação para querer mencionar que eu fiz uma fala racista, uma fala machista, faz um corte específico daquilo que interessava a ele. Pois bem, ele não traz o contexto de tudo que estava acontecendo [...]. O vereador, de uma forma oportunista, tenta distorcer, desvirtuar, desfocar, tudo o que estava acontecendo aquele dia [...]". 

Diante desse seu pronunciamento, o Correio da Manhã procurou o vereador para esclarecimentos. Uma das perguntas foi para entender em qual contexto a fala 'suas negas' seria aceitável ou justificável naquela discussão. Além da possibilidade de abertura para o parlamentar falar sobre o episódio. Tanto por ligações, quanto por mensagem de áudio, o vereador Cabo Jean não retornou, até o fechamento desta edição, ao nosso contato.

Cabo Jean é filiado ao Partido Liberal (PL) de São Roque, cujo diretório municipal é presidido por Ronaldo Alves. A redação do Correio da Manhã entrou em contato com o dirigente partidário, buscando um posicionamento oficial da legenda. 

À reportagem, o presidente do partido no município afirmou: "Conheço ele e a índole que traz consigo e, apesar de triste colocação, entendo o estado psicológico que ele enfrenta, diante do que se tornou a política local. Infelizmente, não temos uma paridade ideal e a situação se tornou quase que unânime. Apesar disso, todos temos que ter cuidado com as falas e tenho certeza de que ele não quis agredir a ninguem, seja pela cor da pele ou do sexo, mas, quis confrontar as aberrações que temos visto [...]. Mas, o partido, de forma oficial, não fará nenhuma declaração, pelo menos por ora", finalizou.

Câmara se posiciona

Já a Câmara Municipal de São Roque, se manifestou oficialmente por meio de nota:

"A Câmara Municipal da Estância Turística de São Roque repudia todo e qualquer ato que venha a configurar conteúdo racista, ou que utilize termos discriminatórios, contrários aos valores de igualdade, respeito e diversidade que defendemos. Este Poder Legislativo, enquanto ente público, não responde pelos atos individuais dos seus Vereadores. Eventual ocorrência de ato que possa infringir diretamente a dignidade de outrem, em discurso em Tribuna, deve ser investigado pelos meios adequados. A Câmara Municipal de São Roque atua em estrito respeito à Constituição Federal, que estendeu aos Vereadores a imunidade parlamentar material, de modo que, no exercício do mandato e na circunscrição do Município, são civil e penalmente invioláveis por suas opiniões, palavras e votos".