Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Três dias depois de sua estreia mundial, no natalino 25 de dezembro, "Nosferatu" consagrou-se como um êxito de bilheteria ao arrecadar US$ 56 milhões, sob pesada concorrência ("Mufasa", Sonic 3"), arrebatando elogios da crítica pelo requinte de seus planos. Foi lançado no Brasil na última quinta, cercado por "O Auto da Compadecida 2" por todos o lado, mas encheu salas... e colheu aplausos. Com as cifras que fez, provou o quanto a boa onda que impulsiona o cinema de terror, vide a avassaladora consagração de "A Substância" (hoje na MUBI), não quebra fácil e é capaz de renovar grifes autorais. Robert Eggers, diretor da epifania vampírica orçada em US$ 50 milhões, baseada no clássico homônimo da rra muda das telas, é um desses autores.
Partiu do marco expressionista lançado em 1922 por Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), derivado do romance "Drácula" (1897), e construiu uma visão particularíssima do Príncipe das Trevas. Tem fortes chances de indicações ao Oscar, sobretudo para os figurinos de Linda Muir, para a direção de arte de Craig Lathrop e Beatrice Brentnerova, e para a fotografia de Jarin Blaschke. O prestígio que vem alcança, sessão a sessão, com a saga do Conde Orlok (Bill Skarsgård), em sua sede de sangue e do amor de Ellen (Lily-Rose Depp), abre uma corrida por seus filmes anteriores, que têm o Brasil no DNA. Rodrigo Teixeira, da RT Features (de "Ainda Estou Aqui"), foi o produtor de seus dois longas-metragens iniciais: "A Bruxa" ("The Witch", 2015), hoje na Netflix, e o badalado "O Farol" ("The Lighthouse"). Esse último pode ser visto na Prime Video.
Com a conquista do Prêmio da Crítica dado pela Fipresci (Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica) no Festival de Cannes de 2019, "O Farol" custou US$ 11 milhões e somou US$ 18,3 milhões na venda de ingressos, embalado por uma indicação ao Oscar, recebida pelo já citado fotógrafo Jarin Blaschke, escudeiro de Eggers. Nas raias do calafrio, a produção é uma experiência narrativa que esgarça as fronteiras do jogo cênico, dando ao perseverante Robert Pattinson ("The Batman") uma paga à altura de seu esforço. Ele galga uma borda de abismo que lembra o destino de Jack Nicholson no cult "O Iluminado" (1980). São filmes da mesma enfermaria.
A projeção de Eggers na Croisette ocorreu numa das mais respeitadas vitrines da maratona cannoise, a Quinzena de Cineastas, numa chuvosa manhã de domingo, um dia antes da RT levar "A Vida Invisível", de Karim Aïnouz, ao Palais des Festivals, de onde saiu com o Prix Un Certain Regard. A França serviu de berço para ambos os longas e tratou Pattinson com loas, em especial depois de ele ter passado lá com alguns de seus trabalhos mais ousados, como "Bom Comportamento" (2017) e "Cosmópolis" (2017), buscando se desligar da aura de galã que viu se formar a seu redor com "A Saga Crepúsculo" (2008-2012).
Na direção de "O Farol", Eggers confirmou seu domínio pleno das ferramentas da insanidade e das trevas. Nunca uma sereia foi tão aterrorizante nas telas, quanto a que cruza o caminho dos faroleiros Howard (Pattinson) e Wake, papel de um devastador Willem Dafoe, que brilha ainda em "Nosferatu", consolidando uma parceria com o realizador. Fez com ele ainda "O Homem do Norte" (2022), uma espécie de Conan contemporâneo, que pode ser acessado via Prime Video. São títulos que carregam a assinatura estética de Eggers, empenhado em expor as muitas vulnerabilidades dos homens numa sociedade que escanteia a virilidade.
Na trama de "O Farol", o isolamento leva Howard e Wake a um processo de descontrole, que arranha a violência. Passam a ver o que não existe e revelam o pior que guardam na alma. É um thriller psicológico respeitoso com a tradição desse filão.
Laureado com o prêmio de realização em Sundance, "A Bruxa" tinha em si um respeito canino pelos cânones clássicos do terror, entregando ao espectador aquilo que mais se espera desta linhagem - ou seja, sustos -, mas o faz caminhando por uma selva de signos quase animalescos, primevos, do masculino e do feminino. Atuações primorosas, sobretudo a da atriz Anya Taylor-Joy, alternam espaço com um personagem para entrar na História do assombro: o bode Black Phillip. A cada ano que passa, esse longa se torna mais vivo e pujante, com sua reflexão sobre a opressão das mulheres, ao longo dos séculos, caracterizada a partir de uma Nova Inglaterra de excomunhões, paganismos e de feitiçarias do século XVII. Eggers caminha na referência de dois pensadores cinematográficos da Fé e do ardor - o Ingmar Bergman de "A Fonte da Donzela" e o Carl Dreyer de "A Palavra" - para fazer uma metafísica da culpa e do revanchismo. O debate plástico e cinéfilo aberto lá volta em "O Farol", numa discussão sobre (in)sanidade, e regressa em "Nosferatu", num duelo entre a razão e o místico.
Esperemos o que Eggers tem pela frente...