Por: Aline Teodoro de Moura*

No final das contas… Crivella será exemplo da fragilidade técnica de pareceres prévios

Pela primeira vez em 39 anos de fundação, o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCMRJ) emitiu pareceres prévios com recomendação para a Câmara Municipal reprovar as contas anuais de um prefeito. O nome em questão foi o de Marcelo Crivella, e as análises referentes biênio 2019-2020. Na condição de acadêmica e pesquisadora, tive - e mantenho - a convicção da falta de elementos que justificassem a reprovação, sobretudo em dois anos marcados por calamidades públicas de ordem sanitária e desastre natural de inegáveis proporções.

Para iniciar, ressalto os vícios insanáveis verificados nos pareceres prévios examinados, com destaque para a inobservância do contraditório e da ampla defesa no curso da instrução no TCMRJ. Houve, por exemplo, intervenção decisiva de agente comissionado (sem vínculo) durante o processo de instrução na Corte de Contas. Isso sem contar a ausência de intervenção do fiscal da lei, já que os dois tribunais de contas municipais (existentes somente no Rio de Janeiro e em São Paulo) até hoje não dispõem de Ministério Público especializado em contas.

Sem motivos razoáveis e proporcionais em um cenário de catástrofe natural seguida da pandemia da Covid-19, o TCMRJ recomendou a rejeição das contas a despeito de o Prefeito ter cumprido, com folga, os mínimos de gastos em Educação e Saúde. Na prática, a cidade do Rio esteve superior a outros Estados da Região Sudeste e bem acima da média nacional. O TCM também não sopesou que o Rio foi vítima de grave violação do pacto federativo, com retenção indevida de parte significativa da cota-parte de impostos estaduais que pertencem ao Município.

Os pareceres também refletiram visão no mínimo preconceituosa em relação à dívida pública, que, na Cidade do Rio de Janeiro, encontrava-se bem abaixo do limite fixado pelo Senado Federal. Não consideraram as obrigações financeiras assumidas em gestões pretéritas para realização de megaeventos, com cronograma de pagamento desproporcionalmente concentrado durante o mandato do Prefeito Crivella, o que levou à judicialização.

Tampouco o TCMRJ ponderou a necessidade de o Município gastar R$ 722 milhões com despesas extraordinárias e emergenciais para reconstruir a Cidade castigada por fortes chuvas em 2019. Ignorou que a União e o Estado não honraram obrigações milionárias de ressarcimento de despesas realizadas pelo Município em unidades de saúde federais e estaduais, assim como não se sensibilizou com os gravosos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19, apesar do regime extraordinário fiscal instituído pelo Congresso Nacional.

Esse breve resumo demonstra a desproporcionalidade dos pareceres prévios, o caráter político-ideológico de suas motivações, e expõe o compromisso do Prefeito com o financiamento de importantes políticas públicas sociais, sem deixar de lado a preocupação com as contas públicas. Em desfecho, é oportuno registrar, por dever de justiça, que o órgão técnico do TCMRJ (Corpo Instrutivo) opinou inicialmente pela aprovação das contas de 2019. Somente a partir da intervenção de comissionado da Procuradoria Especial (sem vínculo com o quadro próprio de pessoal) que o processo teve alteração de rumo, o que resultou no parecer prévio com recomendação de rejeição das contas.

Ainda bem que a democracia em que vivemos tem os seus caminhos para corrigir e evitar possíveis injustiças. O resultado foi que os nobres vereadores da cidade entenderam as razões apresentadas e votaram pela aprovação das contas. A decisão deu frutos. E boa notícia é que o leading case carioca despertou a atenção da comunidade acadêmica, que criou o grupo de pesquisa Observatório de Finanças Públicas, já registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O objetivo é discutir as principais disfunções que levaram a dois pareceres prévios desarrazoados e com propostas desproporcionais submetidas ao julgamento da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, cujo desfecho poderia não apenas comprometer a trajetória do agente político, mas, sobretudo, induzir comportamento dos gestores do futuro na resposta a calamidades públicas, com prejuízos irreparáveis aos cidadãos cariocas e a todo Brasil.

*Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio; Mestre e Graduada em Direito e Especialização em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Federal Fluminense. Membro da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB/RJ.

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