A quase naturalidade com que foi recebida a morte do argentino Lorenzo Somaschini, de 9 anos, após acidente no autódromo de Interlagos (SP), revela muito da insensibilidade geral da nação: ele não era um piloto, mas um garotinho que disputava provas montado numa motocicleta de 160 cilindradas.
Leitor/leitora, olhe para seu filho ou filha, para seu neto/neta de nove anos. Você consegue imaginá-lo(a) pilotando uma motocicleta capaz de chegar a 150 km/h na Honda Junior Cup, que aceita crianças a partir de oito anos de idade? Foi num treino da prova que houve o acidente.
A situação é tão absurda que os organizadores do campeonato SuperBike Brasil omitiram a idade de Lorenzo na nota em que, no último dia 17, anunciaram sua morte. Ele foi chamado de "piloto". Antes dele, outros cinco participantes do SuperBike Brasil já haviam morrido em acidentes nos últimos sete anos.
A tragédia provocou uma lavagem coletiva de mãos: em 2019, após duas mortes consecutivas em provas do SuperBike, a prefeitura de São Paulo, dona do autódromo, proibiu a realização de provas de motociclismo por dois meses. Desta vez, soltou nota em que ressalta só fazer a "cessão onerosa" da pista "mediante a exigência de dispositivos de segurança rigorosos, conforme acordo com o Ministério Público".
A Confederação Brasileira de Motociclismo informou que o SuperBike Brasil não é homologado pela entidade. Patrocinadora da prova desde 2013, a Honda classificou o acidente de "faltalidade" e ressaltou que, para participar das competições, "pilotos menores de idade precisam da autorização dos pais/responsáveis, além de estarem filiados a uma federação de motociclismo". Frisou que, "ao se inscreverem voluntariamente no campeonato", os competidores "passam por avaliações técnicas conduzidas pela organização do SuperBike Brasil".
A Lei Geral do Esporte prevê autorização de pais ou responsáveis para participação em competições, mas para adolescentes entre 12 e 14 anos de idade.
Como base no Estatuto da Criança e do Adolescente, a coluna questionou o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a necessidade de autorização judicial para a presença de menores de idade no SuperBike Brasil (o inciso II do artigo 149 do ECA prevê tal medida para o caso de participação de criança ou adolescente em "espetáculos públicos e seus ensaios").
O TJ disse que, no caso, bastaria autorização de pais ou responsáveis, como seria previsto no inciso I do tal artigo, que fala em entrada de menores de idade em espetáculos. Em 2002, porém, o Superior Tribunal de Justiça citou o inciso II e manteve a exigência de autorização para situações em que crianças e jovens participassem de maneira efetiva dos eventos.
A polícia abriu inquérito sobre o caso, assim como o Ministério Público do Trabalho: o procurador Cássio Casagrande ressalta que a Constituição e o ECA estabelecem a proteção integral à criança e ao adolescente. Para ele, o Estado e a sociedade devem proteger menores de idade até dos próprios pais, quando estes os colocam em risco — cita o caso de responsáveis que permitem manuseio de armas pelos filhos.
A também procuradora do MP do Trabalho Danielle Cramer destaca que, pela legislação, o esporte praticado até os 14 anos, deve ter "caráter lúdico, recreativo e educativo e precisa evitar a hipercompetitividade, a seletividade e a cobrança por resultados". Mas o perfil no Instagram da Honda Junior Cup estimula a competição, chega a exaltar disputa de posições ocorrida numa prova, classificada de "insana".
O adjetivo é adequado por caminhos tortos: é insano deixar que crianças participem dessas competições. Uma proibição que deveria ser explicitada para que não houvesse mais dúvida sobre isso. Que venha a Lei Lorenzo Somaschini.