Por: Ricardo Cota*

Cabral e a sua aura de boteco

Ricardo Cota com Sérgio Cabral | Foto: Reprodução

Existem pessoas cuja presença transcende o físico. Trazem consigo algo maior, uma aura de encantamento que muitos chamam de carisma. Pois bem, o jornalista Sergio Cabral, que partiu ontem, aos 87 anos, era dessas pessoas que transformam o convívio em privilégio.

De origem humilde, forjado no bairro de Cavalcanti, nasceu jornalista. Aliás, nasceu cronista, com uma capacidade nata de apreender o mundo ao redor e transformá-lo em anedotário muito próprio do Rio de Janeiro. Os hábitos, as peculiaridades, o humor e sobretudo a música do Rio de Janeiro, tiveram em seus registros a melhor tradução.

Mas escrever não bastava. Era preciso mais. E Cabral entrou para o núcleo dos grandes, como Lúcio Rangel, Albino Pinheiro, Hermínio Belo de Carvalho, intelectuais integrados e compromissados em fazer a ponte da favela para o asfalto. Seu livro sobre a história das escolas de samba abriu uma fenda no muro que separava o erudito do popular. Para Cabral, a cultura era isso, um fluxo contínuo entre todas as classes, a utopia da igualdade social escrita no batuque das caixas de fósforos. Dedicou-se a biografar personalidades como Elisete Cardoso, Ari Barroso, Grande Otelo, Tom Jobim, Carlos Manga. Dizia que água de coco e biografia eram as melhores coisas a se fazer… vestido!

Tornou-se um verdadeiro embaixador do samba. Não só. Cabral, como genuíno carioca suburbano, era um amante do futebol. Fez do Vasco e de sua história um bastião da luta contra o preconceito racial. Inventou o “dinamite” que virou praticamente um sobrenome do artilheiro Roberto.

Esteve à frente do grupo que fundou o Pasquim, semanário revolucionário que, com humor e muita inteligência, tirou do sono os guardiães da ditadura. Preso, conquistou até a simpatia dos carcereiros. Contava que um deles, ao reconhecê-lo, trouxe um violão para que cantasse sambas. Cabral nunca tocou violão, mas improvisou qualquer coisa para garantir a sua e a paz de seus camaradas encarcerados naquela madrugada.

Na política, foi o único dos jornalistas do Pasquim que se candidataram a se eleger. Levou para a Câmara de Vereadores o espírito combativo e o profundo amor pelo Rio de Janeiro.

Incontáveis casos, ensinamentos e, é claro, pileques fizeram parte de nossa história particular. Cabral trazia consigo o que eu nomeava “aura de boteco”. Em qualquer lugar que nos encontrássemos, iluminava tudo paralisando o tempo num boteco imaginário de boa conversa. Samba, futebol, literatura, teatro, nada fugia ao velho, que sempre tinha algo a ilustrar.

Seu filme preferido era “Una Vita Dificile”, de Dino Risi, com Alberto Sordi. Dizia que o protagonista realizara na tela um desejo que reprimu em vida: dar um tapa na cara do patrão. Também amava “Aquele que Sabe Viver”, curiosamente do mesmo diretor.
Ouvia música com reverência sacra. Certa vez, em seu apartamento em Copacabana, numa daquelas antológicas libações, ao reparar que os convidados não paravam de falar diante de uma canja da formação original do Época de Ouro, deu um pito geral: “Silêncio! Ajoelhem-se!”

Que vá ao encontro da sua santíssima trindade: Vinícius, Ciro Monteiro e Pixinguinha. Dê um beijo na sua idolatrada Elisete. Emocione-se na presença daqueles dois que certa vez me confessou serem os únicos que o faziam chorar a cada encontro: Grande Otelo e Ari Barroso. Prepare o nosso boteco na parte de cima. E, mais uma vez, obrigado por ter trazido leveza às nossas “vitas dificiles”. Evoé, Cabral!

*Jornalista