Os soldados perdidos de Geraldo Vandré

Por Fernando Molica

A participação de militares na conspiração golpista atualiza os versos de Geraldo Vandré que, há 56 anos, anteciparam o endurecimento da ditadura e o desespero: "Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos, de armas na mão".

Em setembro de 1968, a dois meses e meio da decretação do AI-5, num país em que muita gente ainda chorava o  assassinato do secundarista Édson Luís e exaltava a Passeata dos Cem Mil, Vandré empunhou seu violão e, num Maracanãzinho lotado, apresentou "Caminhando" ("Pra não dizer que não falei das flores") — a "Marselhesa" brasileira, na definição de Millôr Fernandes.

Era uma típica canção revolucionária: de harmonia simples (pode ser tocada com dois acordes) e recheada de versos fortes, que exaltavam a revolta e, mesmo, o voluntarismo: "Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer".

Vandré fez um diagnóstico das mazelas brasileiras — a fome em grandes plantações —, exaltou os indecisos cordões que, nas ruas, mostravam resistência à ditadura.

E foi preciso na estrofe em que analisa e critica o comportamento de militares, focou não nos oficiais, mas nos soldados, armados e perdidos.

Os dois versos seguintes são igualmente brilhantes ao ressaltar o papel dos que creem num país abstrato, sem povo, sem contradições, que acreditam na imposição de um pensamento único que reflete seu limitado entendimento do que seja uma sociedade: "Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ De morrer pela pátria e viver sem razão".

Vandré falou de uma pátria impositiva, cruel e excludente, tão antagônica à citada por Vinicius de Moraes: "A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo". A pátria sem sapatos, sem meias, tão pobrinha — e adorável: "Vontade de beijar os olhos de minha pátria/ De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...".

Nascido da violência da escravidão, torturado por ditaduras e preso a tantas injustiças, o Brasil volta e meia bate com a cabeça na parede, volta-se contra si mesmo. Em 2018, decidiu, no voto, respaldar um projeto autoritário, grosseiro, excludente. Foi como uma criança que, reconhecendo sua incompetência e imaturidade, pede ajuda a um pai severo, que iria colocar tudo em seu lugar.

Amados ou não, perdidos de pedras na mão, dispostos a viver sem razão, milhões de brasileiros ocuparam o lugar dos soldados cantados por Vandré. Marcharam na porta de quartéis, clamaram por um golpe, abriram mão da dignidade cidadã.

Hoje, sabemos que corremos um risco muito grave, que por pouco não fomos jogados num projeto que tinha tudo para descambar numa carnificina como a verbalizada, em 1999, por Jair Bolsonaro.

É preciso aprender a sempre renovada lição da democracia, civilizar o poder militar, abrir mão da carência autoritária — vencidos, os canhões têm que ficar em seus devidos lugares.