O surfe mundial se despede de um ícone. Maya Gabeira, surfista profissional de ondas gigantes, anuncia sua aposentadoria e deixa para trás, além das competições, um espólio de conquistas dentro e fora da água salgada. Sua coragem vai muito além da busca incessante por ondas de mais de 20 metros de altura. Ao enfrentar preconceitos e transpor barreiras impostas pelo machismo, a surfista abriu espaço para a inclusão das mulheres e revolucionou para sempre o esporte que ama.
Talvez agora após o seu afastamento, poderemos ter a real dimensão de sua relevância para a modalidade. A carioca de 37 anos não pode ser definida apenas como uma pioneira do Big Wave Surfing. Ela é muito mais do que uma das precursoras a desbravar mares com paredões de água do tamanho de prédios em campeonatos contra os homens. Maya é uma vencedora e uma sobrevivente.
Em 20 anos de estrada, empilhou prêmios e recordes que a consolidaram como uma lenda do surfe. Por quatro anos seguidos, entre 2007 e 2010, venceu o Billabong XXL Global Big Wave Awards na categoria Melhor Performance Feminina. Resultados que refletem um domínio no esporte e que exaltam tanto a sua aptidão, quanto a bravura para encarar ondas de tal magnitude que poucos seres humanos, independentemente do gênero, ousariam desafiar.
Em 2013, um baque mudaria e, ao mesmo tempo, moldaria a sua trajetória profissional e pessoal. Nas ondas gigantes de Nazaré, pequena vila em Portugal, a surfista sofreu um grave acidente, foi socorrida às pressas e precisou ser ressuscitada ainda na areia. O sonho quase lhe custou a vida.
O efeito do episódio poderia ter sido apenas físico e emocional, mas se mostrou ainda maior do ponto de vista social. Maya foi alvo de misoginia. Advinda tanto de pessoas que nunca sequer remaram em direção a uma onda ou ficaram em pé em uma prancha, como até de surfistas renomados, como o norte-americano Laird Hamilton que afirmou à época que ela 'não tinha habilidade suficiente para surfar nas condições de Nazaré e não deveria estar na modalidade de ondas grandes'.
Uma aposentadoria precoce poderia ser o caminho natural a ser seguido em meio aos riscos da atividade e ao próprio apreço à vida gerado pelo susto dado pelo oceano. Entretanto, o que é a vida sem um propósito? Ela deu de ombros para a visão dos críticos, lidou internamente com seus traumas e fantasmas, enfrentou o preconceito de forma franca e não apenas voltou ao surfe, mas o fez para entrar para a história.
Ao superar o medo e voltar à Nazaré, Maya Gabeira silenciosamente assinava um manifesto no qual deixava claro que ela poderia surfar no mar que julgasse conveniente e que era capaz de domar um dos picos mais assustadores do mundo. A recompensa veio cinco anos depois.
Em 2018, ela entrou para o Livro dos Recordes ao 'dropar' uma onda de 21 metros, justamente em Nazaré. Não satisfeita com o feito já extraordinário, ela quebrou a própria marca em 2020 ao descer uma "bomba" de 22,4 metros no mesmo local e se tornar a detentora, até os dias de hoje, do recorde mundial de maior onda surfada por uma mulher. Tudo isso, após lidar com lesões debilitantes que exigiram três cirurgias na coluna e longas jornadas de reabilitação física, mental e emocional.
A sua contribuição para o surfe brasileiro é inegável. Os prêmios e recordes legitimam essa realidade, edificada anos antes da chegada da geração 'Brazilian Storm', grupo de surfistas brasileiros como Gabriel Medina, Adriano de Souza, Ítalo Ferreira e Filipe Toledo que gozam de merecida repercussão e têm dominado o circuito mundial nos últimos anos.
A surfista carioca foi corresponsável pela transformação da indústria do surfe de ondas gigantes e colaborou, junto com nomes como Michaela Fregonese, Carlos Burle, Eraldo Gueiros, Rodrigo Koxa e o contemporâneo Pedro Scooby para a consolidação da imagem profissional dos surfistas brasileiros no meio, antes vista com desdém pelos colegas australianos e norte-americanos. Hoje, jovens como Lucas Chumbo na categoria masculina e, principalmente, Michelle des Bouillons colhem seus frutos, pois tiveram em quem se espelhar para conduzir o surfe brasileiro nos mares mais desafiadores do mundo.
O legado de Maya Gabeira transcende o universo esportivo. A surfista furou a bolha ao afrontar normas sociais, superou obstáculos de gênero derivados de um ambiente tradicionalmente dominado por homens e deixou uma marca que vai além das conquistas individuais, já que gera grande impacto coletivo. Em hebraico, o nome Maya significa nada mais nada menos que 'água'. Foi deslizando sobre sua variante salgada que ela ressignificou sua designação como um símbolo de coragem, resiliência e inspiração para as próximas gerações de mulheres surfistas de todo o mundo.
*Colunista do Correio da Manhã