Salgueiro, Paraíso do Tuiuti e Império de Samba Quem São Eles têm em comum não só o fato de serem escolas de samba - as duas primeiras, do Rio; a última, de Belém -, mas de terem homenageado a escritora, jornalista e foliã Eneida de Moraes (1903-1971), que assinava seus textos apenas com o primeiro nome. Apaixonada por Belém do Pará, sua cidade natal, pelo Rio de Janeiro, onde morou até o fim da vida, e pelo Carnaval, Eneida escreveu História do Carnaval carioca, publicado em 1958, foi jurada de desfiles carnavalescos e produziu diversas crônicas sobre o tema.
Em 1965, o Salgueiro, agremiação pela qual torcia, colocou na Avenida "História do Carnaval carioca - Eneida", baseado no livro de sua autoria, comemorando os 400 anos da cidade do Rio de Janeiro; em 1973, dois anos após a morte da cronista, a mesma escola desenvolveu o enredo "Eneida, amor e fantasia"; nesse mesmo ano, foi homenageada pelo Império de Samba Quem São Eles, com o enredo "Eneida sempre amor"; e, por fim, em 1990 (com direito à reedição em 2010), o Paraíso do Tuiuti desfilou com o enredo "Eneida, o pierrô está de volta", numa alusão ao Baile dos Pierrôs - criado pela escritora -, que teve edições nas duas cidades, Rio e Belém.
Este ano a Grande Rio levou para a Sapucaí um enredo que muito bem explorou uma das paixões da autora, o Pará. A sinopse começa com um trecho de Eneida presente em seu livro Banho de cheiro: "Só o mar, o rio, o Grande Rio, aqui azul, ali verde, mais distante negro, barrento além, límpido mais adiante, interessava sua curiosidade, dava-lhe o desejo de viver e ser gente." Esse rio, "barrento além", apareceu encontrando o mar em uma ala da escola com componentes de fantasias em tom azul e outros em tom marrom, representando o encontro das águas. No trecho citado, Eneida fala de seu pai, por ela definido como "um cidadão da Amazônia que veio de um barranco de Santarém para o mar, o seu rio", formado capitão de longo curso, fascinado pelo rio Amazonas, responsável por contar para a filha lendas amazônicas e outras histórias referentes à cultura local da cidade onde ela nasceu e a qual tanto amou.
Com o enredo "Pororocas parawaras: as águas dos meus encantos nas contas dos curimbós", a Grande Rio - que ficou em segundo lugar, atrás da campeã Beija-Flor por apenas um décimo de diferença - contou a história de Jarina, Herondina e Mariana. Os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad explicam que essas três princesas turcas se encantam no oceano e se tornam, em terras brasileiras, figuras centrais do tambor de mina paraense, sendo cantadas pelos carimbós.
Para abordar essa história, a agremiação mostrou na Avenida os costumes do Pará, suas águas, crenças, danças, cerâmicas, saberes, enfim, expressões populares de sofisticado conhecimento. No livro Terra verde: versos amazônicos, primeiro publicado e único de poemas, Eneida escreve versos sobre o banho de cheiro, o açaí, o muiraquitã - a pedra verde da felicidade -, a Uiara, o sol e a luz da Amazônia, a alma cabocla e, entre outros elementos, a voz da natureza. Tanto este livro quanto Banho de cheiro são dedicados à sua cidade natal, de onde saiu definitivamente em 1930, quando foi para o Rio de Janeiro.
Ao citar a escritora logo no início da sinopse, a Grande Rio recorda uma voz fundamental das letras nacionais e do Carnaval carioca, e Eneida acaba sendo também homenageada pela escola, como foi a cantora dona Onete, por exaltar em alegorias e fantasias deslumbrantes seu estado e sua gente. Ainda em Banho de cheiro, escreve a autora: "Até hoje nunca me faltou o banho de cheiro, o banho da felicidade que vou buscar, anualmente, na minha terra. Enormes garrafas trazem, pelos ares, as águas cheirosas de minha gente."
As águas cheirosas de sua gente trouxeram para o Rio, para o Sambódromo, o perfume de Eneida, sua alegria - ela que tanto gostava de gargalhar e que tinha uma presença marcante onde chegava -, seu afeto e admiração pelo povo brasileiro e pelos cariocas. "Saúdo os carnavalescos de ontem, de hoje, de amanhã, pois, enquanto esta cidade existir e este país viver, jamais terminará o Carnaval carioca, modificando-se é certo, empobrecido hoje, mas sempre carnaval na alma do povo e da gente desta terra. Sou de outras terras, mas sou também carioca pelo que me declaro carnavalesca", escreveu no Diário de Notícias em crônica publicada no ano de 1957.
Pelo amor ao Carnaval, se sentia também carioca, e com certeza, quando sua terra e sua gente entraram na Avenida, com um público tremulando várias bandeirinhas do Pará, nas encantarias paraenses estava Eneida. Ao sentir o cheiro cheiroso ("chêro chêroso", salientava ela a pronúncia) na Sapucaí, imaginei Eneida sorrindo de braços abertos na pista, deslumbrada com o belíssimo desfile que fez a Grande Rio.
*Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora da tese "Eneida: cronista, flâneuse e foliã".