Por: Thamiris de Azevedo*

Marco Temporal: problema atemporal que foi postergado

Em 1988 os indígenas pleitearam um capítulo diferente do transcrito na atual Constituição Federal

Em pesquisa realizada depois da faculdade, quando fazia parte de um grupo de pesquisa sobre Teoria Crítica da Constituição e dos Direitos Humanos, fui atrás de documentos que constituíram a Constituição Cidadã, como era apelidada por Ulysses Guimarães, que ocupava a linha de frente de sua formulação.

Nesse estudo, comecei a destrinchar os mecanismos que justificavam a presença da cidadania em sua íntegra. Li os Regimentos Internos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e aprofundei nas ferramentas populares, em que a população, em tese, poderia participar diretamente da construção da constituição. Aqui destaco a chamada Emendas Populares.

Essas Emendas, cuja dita popular, significava que a pulação podia propor artigos a serem transcritos, com ajustes ou não, na nova Constituição Federal que iria reger o país. Ora! Finalmente a democracia estava retornando para o país! A participação popular efetiva a transição democrática no Brasil: "É a voz do povo" na CF. Será?

Burocracia

Embora chamadas de populares, não julgo tão popular assim frente as dificuldades impostas pelo Regimento Interno nº 2 da ANC. Para que a proposta passasse pela Comissão era necessário a assinatura de 30 mil eleitores brasileiros e apoio de três entidades associativas legalmente constituídas.

Em minha avaliação, essa burocracia já afasta um tanto o caráter popular. Mas a pesquisa fez um recorte ainda mais delimitado, pois queria entender a participação indígena nessa possibilidade de propor um texto para a Constituição.

Os indígenas, e os grupos pró indígenas, se mobilizaram e conseguiram assinaturas os suficientes para pleitearem suas propostas. Foi um árduo trabalho dos movimentos sociais e da própria população indígena. Finalmente, a proposta de Emenda Popular nº 39 chegou na ANC, com 9 artigos com cerne na defesa das Nações Indígenas. E foi negada.

Proposta

Sem ignorar os avanços do Capítulo VIII "Dos índios" da Constituição Federal, destaca se neste artigo o potencial da retirada das Nações Indígena do texto constitucional para dar lugar somente a um capítulo genérico e vago "Dos índios".

Em suma, pleiteava-se na Emenda Popular nº 39 :

1) O reconhecimento, como direito fundamental, de uma sociedade plurinacional. As Nações Indígenas com cidadania própria e reconhecida sem afastar a cidadania brasileira;

2) Nações Indígenas como sujeito de direito público interno;

3) Além dos direitos originários de propriedade, que vai além da posse, as Nações Indígenas teriam autonomia na gestão dos bens e negócios que lhe dizem respeito.

4) Os bens das Nações indígenas, para além de sua posse, mas como propriedade, constituiria as terras por elas ocupadas, as riquezas naturais do solo, do subsolo, dos cursos fluviais, os lagos localizados em seus limites dominiais, os rios que nelas têm nascentes e foz, e as ilhas fluviais. Estes bens não indisponíveis e impenhoráveis.

5) Nulidade de qualquer ato que disponha dos bens das Nações Indígenas.

6) Vedação da remoção das Nações Indígenas de suas terras e a aplicação de qualquer medida que limite seus direitos às mesmas.

7) Dever da União, meramente administrativo, de demarcar às terras, não cabendo a União a sua propriedade.

8) Órgão na esfera federal constituído de um Conselho Indigenista.

9) Criminalização, sem fiança, daqueles que ocupassem suas terras.

Reflexão

E se aquilo que foi proposto tivesse sido atendido no momento oportuno, em 1988, será que hoje os indígenas precisariam estar revendo a tese do Marco Temporal? Foram ignorados e o problema postergado para legislações infraconstitucionais. Até que o tempo esgotou e a hora de discutir a constitucionalidade, da própria constituição, chegou.

Embora Ulysses Guimarães tenha discursado que a CF admite erros, e por isso condiciona-se às legislações posteriores, alguns erros se fossem de interesse dos parlamentares na época, poderiam ser sanados.

Fato é que a institucionalização das Nações indígenas na Constituição mudaria o atual cenário brasileiro, que é impossível de prever, mas passível de levantar que seria uma hipótese benéfica para a organização e direitos indígenas. Retiraram, portanto, o que chamo de autodeterminação plena dos indígenas.

O indeferimento da Emenda reflete, também, o homem que não reconhece a capacidade das Nações Indígenas de se organizarem politicamente em um Instituição própria para tratar das suas próprias geopolíticas a partir da sua cosmovisão sem quebrar a nacionalidade brasileira

Proximos capítulos

Há previsão de novo debate no Supremo Tribunal Federal sobre o Marco Temporal em 26 de março, às 14h, na sala de sessões da Segunda Turma, de forma híbrida. Pelo menos é a informação, em nota do STF, até o fechamento deste artigo para o jornal Correio da Manhã.

Estas informações foram retiradas e analisadas a partir da íntegra de documento disponíveis no acervo "Memória da Assembleia Nacional Constituinte", no site da Câmara dos Deputados.

*Bacharela em Direito, pós-graduada em direitos humanos e jornalista do Correio da Manhã