O Papa Francisco escolheu o dia certo para fazer seu encontro com o Senhor: a Páscoa, que é o começo do novo e é uma pequena antecipação do fim bom do mundo.
Na perspectiva latino-americana, Francisco emerge como o inaugurador de uma nova genealogia de Papas. Na Igreja europeia vivem apenas 25% dos católicos. Nas Américas, 65%; o restante nos vários continentes. O cristianismo europeu é agônico, por lá há igrejas fechadas porque nenhum fiel a frequenta.
Nas Américas está se consolidando um cristianismo-fonte e não mais espelho dos europeus. Depois de mais de 500 anos de presença cristã, surgiram rostos novos de Igreja, a Igreja na base dos fiéis, bispos despojados não mais morando em palácios, mas no meio do povo; padres que residem nas periferias, uma série enorme de movimentos leigos, que assumem sua autonomia e muitas religiosas vivendo no interior da Amazônia.
Com razão, dizemos que aqui está surgindo uma eclesiogênese, vale dizer, a gênese de outro tipo de igreja. Logicamente, persiste muito ainda o velho estilo romano de Igreja. Mas não é ela que leva ao futuro; não caracteriza um outro estilo de Igreja, diverso daquele estritamente tradicional. Vejo as seguintes características do papado de Francisco de Roma.
Em primeiro lugar, Francisco não é apenas um nome mas um projeto de Igreja: pobre e especialmente para os pobres, uma Igreja anunciadora da paz, contra todo tipo de guerras que existem no mundo. Uma Igreja denunciadora de um sistema econômico que mata, pois pratica dua injustiças: devasta a natureza e oprime a maioria da humanidade; uma Igreja que cuida da criação como Casa Comum.
Ele escreveu duas belas encícliclas: Laudato Si' (2020) sobre o cuidado da nossa casa comum - e Fratelli tutti (2025). Especialmente nesta última, apresenta uma alternativa ao paradigma da modernidade fundado no poder/dominação e do ser humano acima e fora da natureza. Apresenta como alternativa a franternidade universal e o amor social, colocando o ser humano dentro da natureza e irmão e irmão de todos os demais seres, particularmente de seus semelhantes. Nisso vê uma possível salvação da vida na Terra, "pois estamos todos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva".
Francisco de Roma, imitando o de Assis, não vai morar nos palácios pontifícios. Escolhe uma casa de hóspedes, Santa Marta, mora num quarto simples, com outro para receber as pessoas. Está mais próximo da gruta de Belém do que do palácio de Herodes. É um homem entre outros homens. Diz que antes de tudo é bispo de Roma e depois Papa, que quer conduzir a Igreja com amor e não com o direito canônico. Pede aos bispos, coisa inaudita, uma pastoral da ternura e da irrestrita acolhida.
O Papa Francisco "vem do fim do mundo", da Argentina, com outra imagem de Igreja, diversa daquela de seus predecessores, uma Igreja que não é um castelo, voltada para dentro com sua ortodoxia e disciplina e cercada de inimigos, a cultura da modernidade; mas uma "Igreja em saída" na direção dos que estão à margem, que sofrem e se sentem marginalizados. Diz que quer "uma Igreja tenda de campanha", que acolhe a todos os feridos sem perguntar por sua religião, sua moralidade, basta que sejam humanos e necessitados.
Francisco não é uma Papa centrado na ortodoxia, na vigilância dos dogmas e da reta disciplina. Respeita esta formulação mas abertamente diz que com tais coisas não se chega ao coração humano. Precisamos acercar-nos com bondade, com sentido de compaixão e de ternura. Não se trata de converter os outros mas seduzi-los pela mensagem humanitária de Jesus. Repetiu muitas vezes: Cristo veio para ensinar-nos a viver, o amor incondicional, a solidariedade, a compaixão, o perdão, valores que compõem seu projeto de Reino de Deus.
O Papa Francisco se inscreve nos quadros da teologia da libertação de estilo argentino: libertar a cultura silenciada e o povo oprimido. Desde jovem estudante, assumiu esta teologia associada a uma promessa que fez a si mesmo: toda semana visitar sozinho uma favela ("Vila Miseria"), entrar nas casas das pessoas, conversar com elas, animá-las e trazer-lhe a verdade de que Deus ama especialmente os pobres, pois Deus é vivo e prefere aqueles que menos vida têm. Recebe com carinho o fundador da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, John Sobrino e Pepa Castillo. Interrompe o sínodo para lembrar a morte de Gutiérrez, de 96 anos, grande servidor dos pobres. Marcamos pessoalmente por várias vezes um encontro, mas problemas internos do Vaticano o impossibilitaram. Mas tenho cartas carinhosas dele além de uma fotografia juntos, quando dávamos palestras em Buenos Aires, em 1972.
Feito Cardeal, viveu sozinho num pequeno apartamento, cozinhava sua comida, dispensou o palácio e o carro. Ia a pé ou se deslocava de metrô ou de ônibus, comprava seu próprio jornal.
Tema central de sua pregação é a misericórdia infinita de Deus. Diz que a condenação é só para esse mundo, pois Deus não pode perder nenhum filho e filha que criou no amor, pois ninguém pode impôr limites à sua misericórdia que vai além da justiça.
Insiste: não preguem o evangelho com o medo e com a ameaça do inferno. Cristo bem disse no evangelho de São João: "Se alguém vem a mim, eu não mandarei embora". Acolhe a todos, independentemente de sua condição sexual. A um menino que se revela ao Papa como homoafetivo, ouve a resposta: "Deus te quis assim. Deus te ama e eu também de amo". Efetivamente torna a mensagem cristã uma realidade libertadora que humaniza e torna alegre e leve a vida, e não um pesadelo com medo do fogo do inferno.
Ouso pensar que pelo fato da maioria os católicos viverem fora da galáxia europeia, a partir do Papa Francisco virão Papas das Igrejas novas, capazes de dialogar com as demais religiões e viver a nova situação da humanidade, habitando a única Casa Comum. Junto com outros caminhos espirituais, ajudará a manter acesa a chama interior da espiritualidade natural, a alimentará, a cultivará e impedirá que o mais sagrado do ser humano sucumba junto com sua Casa Comum.
*Escreveu: Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova primavera na Igreja Rio de Janeiro 2015