O processo de discussão e aprovação do pacote de contenção de despesas no fim de 2024 acirrou as divergências entre os ministérios da Fazenda e do Planejamento, segundo relatos de integrantes dos dois órgãos colhidos pela reportagem.
De um lado, assessores de Fernando Haddad (Fazenda) cobram maior engajamento da pasta comandada por Simone Tebet na articulação da agenda de revisão de gastos. A avaliação desse grupo é que o trabalho de convencimento e costura das medidas dentro do próprio governo e com o Congresso "sobrou" para a Fazenda, embora o Orçamento seja uma atribuição do Planejamento.
De outro, a equipe da ministra enfrenta resistências dentro do próprio Executivo para emplacar medidas defendidas no âmbito dessa agenda, como a flexibilização de pisos de saúde e educação ou até mesmo a desindexação de alguns benefícios temporários (que não acompanhariam a valorização do salário mínimo, para evitar pressão nas despesas).
A reportagem conversou, reservadamente, com duas pessoas da confiança dos ministros e dois técnicos que participam das discussões econômicas.
Atritos
O desgaste representa um novo capítulo no histórico de atritos entre os dois ministérios, muitas vezes encobertos por afagos públicos entre Haddad e Tebet.
Ambos os ministros mantêm uma relação cordial. Nos bastidores, porém, membros de suas equipes fazem críticas mútuas sobre a condução dos trabalhos e os resultados obtidos.
Procurados, os ministros enviaram uma nota conjunta à reportagem em que "contestam veementemente" a existência de divergências entre as pastas.
No comunicado, Fazenda e Planejamento afirmam que "aprofundaram o relacionamento nos últimos dois anos de trabalho" e que seus secretários e técnicos mantêm reuniões "com frequência acima da média" para discutir o controle das contas públicas.
"Para além disso, os ministros responsáveis têm relação profícua desde a transição de governo. Todo o mais não procede e serve exclusivamente para gerar ruídos desnecessários", diz a nota.
Medidas
No pacote de contenção de gastos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu o sinal verde para mudar a política de valorização do salário mínimo que seu próprio governo havia instituído, num gesto considerado importante inclusive por pessoas fora do Executivo. Ainda assim, outras frentes do pacote foram desidratadas antes mesmo de sua apresentação ao Congresso Nacional.
Durante as discussões, Fazenda e Planejamento elaboraram, cada um, um amplo cardápio de medidas, com diferentes cenários possíveis. A pasta de Haddad também perdeu batalhas, como no caso do seguro-desemprego, mas a percepção no time de Tebet é que muitas de suas sugestões não tiveram respaldo nem do restante da equipe econômica.
A ministra do Planejamento chegou a defender, em meados do ano passado, desvincular do salário mínimo os valores de aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais, que passariam a ser corrigidos apenas pela inflação. O posicionamento entrou na mira da esquerda e não teve, à época, apoio de Haddad.
Depois disso, a pasta de Tebet continuou defendendo medidas sensíveis politicamente, mas que, na visão do órgão, poderiam trazer um ganho fiscal mais significativo. Entre elas, a desvinculação apenas de benefícios temporários, como auxílio-doença, e a reformulação do seguro-defeso, pago a pescadores artesanais no período em que a atividade é proibida. Nenhuma dessas medidas constou no pacote apresentado pela equipe econômica no fim de novembro.
Na avaliação de um interlocutor da Fazenda, o Planejamento precisa "engrenar com o governo", no sentido de que não basta ter ideias, é preciso viabilizá-las politicamente e "encaixá-las" dentro da dinâmica do próprio Executivo.
Outro interlocutor que participa das discussões econômicas afirma que não há divergência em torno do diagnóstico de que a regra do arcabouço fiscal precisa ter resiliência, mas algumas das iniciativas defendidas pela pasta de Tebet não se coadunam ao programa de governo apresentado por Lula e apoiado por ela na eleição de 2022.
Segundo esse integrante do governo, o Planejamento dialoga bem com setores de fora, o que é positivo e segue o adotado também por outras pastas, mas não tem a mesma sintonia dentro do Executivo, e isso poderia estar se refletindo em suas propostas.
Auxiliares de Tebet, por sua vez, veem justamente nessa falta de entrosamento um dos fatores de dificuldade para participar dos debates, fazer o convencimento e emplacar suas medidas.
A ministra chegou a ficar de fora de reuniões sobre o pacote de contenção de gastos, enquanto Haddad e outros homens de confiança do presidente foram chamados ao Palácio da Alvorada.
Mais recentemente, o Planejamento também chegou a participar de reuniões iniciais para discutir a sanção do projeto de socorro aos estados, nas quais manteve uma postura mais crítica do que a Fazenda. Acabou ficando de fora da articulação final.
A sanção do texto, com flexibilizações que deixam a União exposta a impactos bilionários e riscos jurídicos, foi costurada em acordo de Haddad e Rui Costa (Casa Civil) com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), favorito para sucedê-lo no comando da Casa.
Há ainda diferenças de diagnóstico entre as duas pastas. Nos bastidores, integrantes da Fazenda reconhecem que a trajetória da dívida pública preocupa, mas avaliam que o pacote fiscal aprovado no fim do ano passado é, a princípio, suficiente ao proporcionar uma economia em linha com a que o mercado considerava necessário (cerca de R$ 70 bilhões em dois anos).
No Planejamento, a visão é que a situação fiscal e da política econômica é delicada, e é preciso traçar uma estratégia de saída. Para isso, seria necessário voltar à mesa e discutir velhas e novas medidas.
Apesar disso, parte dos aliados da ministra trata as divergências como algo natural entre equipes de diferentes perfis e avalia que a composição final é uma "decisão de governo".
Idiana Tomazelli (Folhapress)