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Os meninos da Vila

Mal acabei de acordar, liguei a televisão. Ao mesmo tempo, algum passarinho perdido piando numa janela da vizinhança. Como sempre faço, dei de cara com o noticiário. E como quase sempre acontece, as notícias são assustadoras. Uma garota estuprada e queimada pelo bandido. Onde vamos parar em termos de decadência social? O poço parece não ter fundo.

Próxima página eletrônica: Vila Isabel em situação de guerra civil. Explodiram uma agência bancária no coração do bairro, no majestoso Boulevard 28 de setembro, uma cena de devastação e horror típica dos tempos que temos vivido. Um país, um Estado e a cidade à própria sorte. Para piorar, vaidades ocas ameaçando as perspectivas de progresso mínimo.

O helicóptero toma belas imagens aéreas de Vila Isabel. Do alto, vejo as partituras das letras de Noel Rosa e penso que fui um rapaz feliz naquela região. Faz tempo, coisa de 30 anos, ao mesmo tempo tão longe e tão perto. É que o tempo escorre em hectolitros.

Éramos garotos da fuzarca da UERJ com 18, 19 e 20 anos, sem um tostão no bolso, cheios de sonhos, com desejo de riqueza, de mudar o país para melhor. Entre os turnos da manhã e noite, com a tarde inteira pelo caminho, saíamos da faculdade para almoçar, sempre durangos. O percurso geralmente era descer a 28 até um restaurante natural da Rua Souza Franco. Era muito bom, baratíssimo, a comida extremamente gostosa. O problema é que, uma hora e meia depois, ficávamos com fome de novo.

Na volta, dávamos voltas pelos arredores, invariavelmente passando pelo Boulevard, o mercado, olhando coisas que não tínhamos dinheiro para comprar. Ou navegávamos por entre os escombros sentimentais da Aldeia Campista, tentando refazer os passos do menino Nelson Rodrigues.

O Brasil de Collor era um desastre, mas começamos a conseguir estágios remunerados. Logo passamos a ser premiados com o maravilhoso ticket refeição, o que nos garantiu a iniciação pela boemia da região. Primeiro pelo Petisco da Vila e, depois, no esplêndido Capelinha, quartel-general de Noel Rosa. Por fim, a sofisticação noventista da Parmê, com suas pizzas maravilhosas que as nossas garotas adoravam, mas não era a única da região: lá no comecinho da 28, onde funcionou a filial da pizzaria paulista Micheluccio, com sabores alucinantes. Certa vez, a Lucia Manuela chegou tão bonita à mesa que o salão parou. A beleza às vezes atordoa.

Se não fosse pelo almoço, numa tarde de bobeira qualquer, bastava passear pela 28, sentir o cheiro da rua, a escola de samba, a casa do Noel. Era divertido. Não que o Rio dos anos 1990 fosse um mar de rosas, mas certas ousadias tinham permissão. Para sair da Parmê à meia-noite, descer o Boulevard a pé até a porta da UERJ para pegar ônibus, cada um para o seu lado e, na semana seguinte, a gente voltava cheio de felicidade para a mesa nova, até o talão de tickets aguentar.

Vila Isabel era a nossa pátria. Sem bombas.

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