“Eu não consigo nem é ter palavras assim para poder expressar. Estou com muita saudade. E um pouco preocupada com o emocional das minhas filhas, como elas vão retornar. Eu vou ter que ter todo um cuidado com elas com relação a isso. Eu sei que elas passaram por um trauma muito grande, dois anos se passaram. Mas eu tenho um laço muito especial com minhas filhas que eu sei que a gente vai recuperar no minuto em que se ver e se abraçar. Tenho certeza que a gente vai ter essa ligação. Elas são muito amadas, e eu sei que essa distância ela não vai ser suficiente para tirar esse laço de amor que nós construímos e que nós temos”.
Esse é o relato da nutricionista Raquel Cantarelli, que conversou em exclusividade com a reportagem. Em setembro de 2023, o Correio da Manhã contou pela primeira vez a história da brasileira, que lutou durante todo esse tempo na Justiça para conseguir a guarda de suas filhas: Júlia, de 7 anos, e Isabella, de 5.
Em 14 de junho de 2023, a polícia apareceu armada na casa de Raquel e levou suas filhas para a Irlanda, onde o pai das meninas mora. Ela não teve mais notícias das filhas nesses quase dois anos separadas. Mas agora, após uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o reencontro entre mãe e filhas pode estar mais próximo.
Entenda
Raquel morava na Irlanda, onde conheceu seu ex-marido. Eles se casaram e tiveram duas filhas. Tudo ia bem até que, quando a mais velha completou dois anos, a brasileira afirma ter descoberto
que a filha estava sendo vítima de abuso sexual vindo do próprio pai. Ela tentou sair de casa, mas o irlandês a ameaçou, tomou seus documentos e dinheiro, mantendo-a em cárcere privado. Com a ajuda de uma vizinha, após diversas tentativas, ela conseguiu retornar para o Brasil junto de suas filhas.
“Eu fui literalmente escoltada pela polícia no aeroporto em Portugal de volta ao Brasil. Porque até o último momento, ele me ameaçava a todo tempo através de mensagens. Os policiais estavam de posse do meu celular e recebendo as ameaças que ele estava direcionando para mim e para as minhas filhas, ameaça de morte. Os policiais viram isso e me protegeram até o último momento. Foram situações de muito medo, eu fui mantida em segurança dentro do aeroporto até o momento de fechar a porta do avião. Os policiais ficaram no era no avião comigo porque a todo momento ele mandava mensagem dizendo que tava indo para o aeroporto atrás de mim. E ele realmente foi, mas o avião já tinha partido”, relembrou Raquel.
Já no Brasil, ela ganhou na primeira instância a guarda das crianças e viveu com elas no Rio de Janeiro por quase quatro anos. Até que um dia a polícia bateu na porta da sua casa. Ela descobriu que seu marido tinha recorrido da decisão da guarda das crianças. Mas dessa vez o irlandês usou uma carta na manga quase infalível: ele acionou a Convenção de Haia.
A Convenção de Haia foi estabelecida em 1980, como instrumento internacional para impedir o sequestro internacional de crianças. Ela determina que crianças que são levadas para fora dos países onde nasceram têm o direito de ser repatriadas.
Mesmo tendo a melhor das intenções, a convenção na época não levava tanto em consideração relacionamentos internacionais, entre pessoas de dois países diferentes. Na avaliação de advogados que defendem mulheres atingidas, a aplicação da convenção em muitos casos vem se dando de uma forma automática, priorizando a questão geográfica sem levar em conta se haverá de fato maior bem-estar e segurança às crianças e muitas vezes dando aval a interpretações machistas e xenófabas em favor de homens, especialmente de países da Europa. E esse foi o caso de Cantarelli.
Jurídico
Na luta para ter suas filhas novamente, Raquel recorreu à Justiça e, após um recurso do Ministério Público Federal (MPF), o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça. A Corte julgou com base no artigo 13B da Convenção, que desobriga as autoridades do Estado à repatriação quando existir um “risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável". É o caso, diante das denúncias de abuso sexual. Após três audiências, em 17 de dezembro de 2024, os cinco ministros que julgaram o caso aprovaram, por unanimidade, o recurso do MPF. Porém, como a decisão saiu próximo ao recesso de fim de ano, o acórdão foi publicado em 20 de fevereiro.
“Foi entendido pelo Superior Tribunal de Justiça que o retorno delas para a Irlanda foi indevido, não deveria ter acontecido, foi feito de maneira errada. Precoce, sem considerar as questões de violência que eu e minhas filhas passamos e todas as provas que foram contidas”, ela detalhou. O genitor tem até o 4 de março para recorrer da decisão.
“A minha expectativa agora é que a AGU [Advocacia Geral da União] não entre com nenhum recurso contra a decisão. O meu defensor está bastante otimista de que a AGU não vai entrar com nenhuma nenhum recurso, porque a decisão foi muito embasada, foi uma decisão por unanimidade”, completou.
Raquel Cantarelli é um de inúmeros exemplos de mulheres que sofrem e são penalizadas pela Convenção de Haia – conhecidas como as mães de Haia. Está pautado no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4245 que questiona a Convenção de Haia – inicialmente estava previsto para a Suprema Corte julgar a ADI em agosto do ano passado, mas teve o julgamento adiado, ainda sem data. Para elas, foi cunhado o termo “Mães de Haia”.
Em meio à forte repercussão do caso, a AGU tem feito diversas declarações públicas de que não recorrerá em casos onde há violência contra a mulher ou contra a criança, que foi o caso de Raquel.
Para a reportagem, a brasileira reportou que já conversou com a Autoridade Central, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável pela boa condução da cooperação jurídica internacional. O órgão informou que está analisando como será o processo necessário para repatriar as crianças de volta para o Brasil.
Porém, as questões ainda estão incertas. Raquel Canterelli é a primeira pessoa no Brasil a conseguir ganhar uma causa para repatriar as crianças para outro país que não seja o que elas nasceram. O Correio da Manhã já contou outras histórias de mães que ganharam processos da Convenção de Haia, mas em nenhum deles as crianças saíram do Brasil.
“Um ministro me disse que isso é algo bastante emblemático e histórico, que vai mudar bastante coisa, porque não tem precedente. Então na verdade, não existe um protocolo de como será feita essa repatriação”, explicou para a reportagem.
“Eu estou muito feliz, assim, de ter ganhado esse processo no STJ. Isso representa muita coisa para mim, não só para o meu caso, eu acho que eu consegui levantar uma voz para muitas outras mulheres que são caladas, que sofrem com isso silenciadas”, celebrou Cantarelli.
Questionada pela reportagem, ela acredita que o caso “envolve uma questão diplomática, de acordo de cooperação entre Brasil e Irlanda” para solicitar o retorno das filhas. “O que eu acho que vai acontecer é que o Brasil vai entrar em contato com a Autoridade Central irlandesa, comunicando a decisão que foi revertida aqui na Corte Superior pedindo o retorno das crianças. E aí essa decisão seria enviada lá para Irlanda. Com isso, o genitor das minhas filhas provavelmente será intimado da decisão e deve ser determinado que ele as entregue”, relatou.
Irlanda
Com o processo jurídico devidamente resolvido no Brasil, Raquel Cantarelli se prepara para ir para a Irlanda acompanhar todo o processo de perto. Como ela está abrindo portas para esse processo, ela ainda não tem certeza se precisa ir fisicamente ao país europeu, mas destacou que acha importante ir para garantir a segurança das filhas e garantir que o genitor das crianças não fuja. Para a reportagem, ela contou
“Eu também me preocupo bastante com o emocional delas, já que elas foram retiradas daqui por pessoas desconhecidas e colocadas dentro de um avião. Eu acredito que isso tenha sido bastante traumático para elas e eu não gostaria que elas passassem novamente por essa situação. Sem saber como é que elas vão chegar aqui [no Brasil], sem saber o que está se passando. São crianças, querendo ou não depois de dois anos elas já podem estar habituadas [com a Irlanda]. E chegarem pessoas estranhas novamente e retirarem elas de lá, eu acho que isso pode ser uma situação muito traumática para elas. Então, se eu puder estar lá, eu quero estar”, respondeu com convicção.
Em meio a todo a luta para trazer as filhas de volta, ela reitera que torce para que sua história sirva como precedente para que outras mães de Haia possam buscar proteção para suas crianças. “A expectativa está a mil para poder ver e abraçar as minhas filhas novamente e poder dizer para elas que a mamãe cumpriu o que prometeu. Porque quando elas foram embora, eu prometi para elas. Eu olhei no olhinho delas e eu falei: ‘Mamãe, vai buscar vocês’. Eu sei que elas estão esperando por isso, sabe? Eu quero olhar para elas, abraçar elas e dizer: ‘Viu, a mamãe disse que ia conseguir, a mamãe disse que viria’. E Eu sei que a gente vai ser muito feliz depois disso tudo”, completou.