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Dualidade imigrante

Por Walter Porto (Folhapress)

Já depois de algum tempo de emigrado, Yacub passa a pensar no Brasil e na Síria como se fossem um só lugar, "um território estendido por cima do mar, uma pele esticada ao limite para cobrir toda a carne". É uma das passagens líricas mais inspiradas em que seu autor, o jornalista e pesquisador Diogo Bercito, ilustra as sensações que acometiam os imigrantes do início do século passado - mergulhados na dualidade entre suas terras de origem e destino, que na verdade compunham uma só memória.

"É um dilema muito típico dos migrantes desse período específico", diz, em referência à década de 1930, sobre a qual estuda e escreve. "'A que território eu pertenço?' Os nacionalismos ainda estavam muito desenvolvidos e, apesar de viver no Brasil, eles ainda se viam como parte da nação dos sírios ou libaneses."

O jovem Yacub está no centro de "Vou Sumir Quando a Vela se Apagar", ficção que o acompanha desde sua decisão de se desgarrar das fronteiras do vilarejo onde nasceu, movido por um trauma romântico dos mais trágicos, até sua peregrinação pelas ruas e estradas de São Paulo, retratada numa meticulosa reconstituição histórica.

Aqui vale contextualizar que a história do garoto sírio - ou brasileiro? - é o primeiro romance de Bercito, que colabora com o jornal Folha de São Paulo há 15 anos e faz doutorado em história na Universidade Georgetown, em Washington, depois de se tornar mestre em estudos árabes em Madri.

Não é surpresa que seu objeto de pesquisa seja a presença de sírios e libaneses em São Paulo, uma produção que já tinha transbordado os muros universitários e rendido "Brimos", obra editada pela Fósforo que conta como essas árvores genealógicas se enraizaram na política brasileira. Agora a investigação rende seus primeiros frutos ficcionais, e eles não caem muito longe do pé.

"Mas eu me peguei imaginando coisas que não teriam me ocorrido na dissertação", afirma o escritor de 34 anos. "Quando Yacub chega à estação da Luz, tive que pensar quanto demoraria para ele andar a pé até a rua 25 de Março. Como seria esse caminho? O que essa pessoa veria? Que tipo de comida comeria ali? São questões raras de aparecer na pesquisa e que certamente vão alimentar meu trabalho acadêmico."

Ao mesmo estilo dos espantos literários, o romance tomou rumos que Bercito não previu. A inspiração original para Yacub era seu bisavô, "uma figura meio mitológica" sobre a qual sua família sabia pouquíssimo -apenas que tinha se envolvido com uma espanhola chamada Remedios, que deu à luz sua avó.

Remedios é uma personagem no livro, mas o protagonista não tem um caso com ela -no lugar, se apaixona aos poucos por Jurj, seu entusiasmado colega de quarto.

"Eu nunca pensei nesse livro como um romance LGBT, mesmo que seja recebido assim pelos leitores", diz o autor. "Não planejei que Yacub sentisse atração pelos amigos dele. E foi difícil escolher palavras para isso num contexto em que as pessoas não tinham nem sequer a opção de se identificar como homossexuais."

O escritor lembra que, durante seu mergulho em arquivos e jornais da época, não encontrou qualquer indício sobre a vida de imigrantes homossexuais no Brasil. "Um silêncio total. E é claro que eles existiram e que tiveram relações durante a diáspora, mas não deixaram resquícios. A ficção acaba sendo a única saída para um impasse histórico como esse."

Essa não é sua única liberdade poética das evidências empíricas. Pelo contrário, "Vou Sumir Quando a Vela se Apagar" é um romance que pende ao fantástico, quase ao fabular, com a figura mítica dos "jinni" -que a cultura popular brasileira incorporou como "gênios"- cumprindo um papel essencial.

O onírico aparece sem prejuízo à concretude jornalística de outras passagens do livro, remetendo a um lirismo que Bercito já identificava nas suas primeiras incursões literárias da adolescência -que, aos poucos, foi deixando de lado em prol da reportagem, excetuados dois roteiros de quadrinhos.

"A ficção tem uma aura que o jornalismo não tem, de que ou você é capaz de fazer ou não é. Naquele momento, mais jovem, eu acreditei que não era e demorou bastante tempo para desconstruir. Acho que hoje tenho menos medo de dar a cara a bater."

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