Por: Fernando Molica

Abjetas eram as chibatadas

Estátua de João Cândido, o 'Almirante Negro' | Foto: Beth Santos/Prefeitura do Rio

Ao classificar de "abjetos" os marinheiros que, em 1910, amotinaram-se contra o uso da chibata na Marinha, o almirante Marcos Sampaio Olsen reforçou a necessidade de o país repensar o papel de suas Forças Armadas. Não é admissível que o comandante de uma força utilize tal adjetivo para ofender homens que eram açoitados em embarcações oficiais.

A carta por ele enviada ao presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, Aliel Machado (PV-PR), não deveria ter sido escrita. A inclusão do nome do líder da Revolta da Chibata, João Cândido Felisberto, no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria é tema político, que deve ser discutido pelo Congresso.

Ao redigir documento para pressionar parlamentares, Olsen reafirmou uma visão que contamina boa parte de nossos militares: a de que as Forças Armadas são independentes, que não devem prestar conta de seus atos. Mas são instituições criadas e sustentadas pelo poder civil, a quem devem obediência. A sociedade não pode ser refém de servidores que dela recebem treinamento, salários, fardas e armas. Disfunção tão flagrante que chega a ser admitida pelo próprio Olsen. Na carta, ele afirma não ser de  competência da Marinha "julgar argumentações" da Câmara. 

Adjetivos usados pelo almirante indicam uma distorção até desumana da história. Além de classificar os marinheiros de "abjetos", ele chama o movimento de "fato opóbrio" (vexaminoso, vergonhoso). Na carta, Olsen admite que havia castigos físicos nos navios, que classifica de "prática inaceitável". Atos que, escreveu, foram "reconhecidos, posteriormente, como "equivocados e indignos". Reconhecidos posteriormente, importante frisar. Depois, diz que há diferenças entre, "reconhecer um erro e enaltecer um heroísmo infundado". 

Não se pode classificar de simples "erro" o estopim da revolta, as 250 chibatadas aplicadas no marujo Marcelino Rodrigues Menezes. Se tamanha crueldade era "inaceitável", como, 114 anos depois, ele diz que não caberia uma revolta por parte de suas vítimas? O que eles deveriam ter feito, comandante? Aceitar o flagelo?

Na carta, o almirante citou que os revoltosos foram anistiados, mas omitiu que eles acabaram expulsos da Marinha, muitos foram presos, torturados e fuzilados. João Cândido foi levado para uma prisão subterrânea onde ficaria por 18 meses e, depois, internado num hospital psiquiátrico. Morreu em 1969, pobre, vendendo peixes.

A posição do comandante da Marinha ajuda a entender a resistência das FFAA em reconhecerem a — esta sim — abjeta tortura praticada durante a ditadura implantada em 1964. A carta legitima o arbítrio e, assim, renova desconfianças em relação aos militares.

Uma discreta e indevida advertência ao poder civil foi incluída no último parágrafo da carta. Nele, o almirante diz que "enaltecer" temas como "passagens afamadas pela subversão" e "ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas" não contribui para o "pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado democrático de Direito."

Não cabe a um comandante militar discorrer sobre democracia, muito menos associar seu estabelecimento e manutenção a esta ou aquela decisão a ser tomada pelo Congresso Nacional. Chefes militares têm que cumprir suas obrigações e sequer deveriam usar a palavra subversão, conceito político que também remete à quebra da ordem constitucional em março de 1964.

É compreensível que o presidente da República evite criar problemas com militares — ainda que, nos últimos tempos, eles é que tenham gerado muita confusão. Mas, como representante do poder civil, Lula, que em 2008 inaugurou estátua de João Cândido, não deveria ficar passivo diante da pressão exercida pelo comandante Olsen, que é seu subordinado.