Vale parafrasear o botânico francês Saint-Hilaire: ou Brasil acaba com as emendas parlamentares ou as emendas parlamentares vão acabar com o Brasil. Em 1800, ele ficou impressionado com a capacidade de tais formigas destruírem tudo o que tinha pela frente; hoje, ficaria admirado como parlamentares deram um jeito de controlar boa parte do orçamento e de destinar dinheiro para obras de seu interesse.
Reportagem do jornal 'O Globo' que trata de um fato ocorrido na cidade alagoana de Junqueiro é exemplar. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou emenda no orçamento federal que destinou R$ 1,1 milhão para obras de pavimentação na localidade de Atoleiro.
A grana foi encaminhada via Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf, sigla que volta e meia é citada no noticiário de maneira quase nunca elogiosa. Empresa federal, pública de direito privado, a Codevasf é comandada em Alagoas por João José Pereira Filho. Primo de Lira e nomeado ainda no governo passado, João é irmão do deputado estadual Fernando Pereira (PP-AL).
O contrato para as obras foi assinado com uma empresa de Sergipe, Vibal Construções e Serviços, que, para fazer serviços de terraplanagem, contratou, veja só, um trator do Grupo Pereira, que tem como donas Zirlene e Jó Pereira, respectivamente mãe e irmã de João e Fernando e, consequentemente, parentes de Lira.
Pode ser que tudo seja apenas obra do acaso, mas as ligações fazem lembrar um famoso poema de Carlos Drummond de Andrade. É aquele que fala do João que amava Teresa, que amava Raimundo, que amava Maria, que amava Joaquim, que amava Lili. Como nas histórias que se repetem com recursos das emendas parlamentares, há muito amor envolvido no poema.
Mas há também muito ódio e muitos interesses nessas tramas. O prefeito de Junqueiro, Leandro Silva, é aliado político do senador Renan Calheiros (MDB-AL), adversário pra lá de ferrenho de Lira (o João, não o do poema, mas o da Codevasf, deve ser candidato à Prefeitura em 2024).
O caso de Atoleiro exemplifica outra situação comum na Codevasf, o drible em prefeitos que não estão ao lado de quem manda a grana das emendas. Quem contratou a Vidal para o trabalho de pavimentação em Junqueiro e Teotônio Vilela não foram as prefeituras ou o governo do estado, mas a própria Codevasf (a coluna localizou o contrato no site da empresa federal). Este tipo de manobra impede que prefeitos adversários sejam politicamente beneficiados pelas obras, o crédito vai apenas para o parlamentar e seus aliados.
Seria irresponsável insinuar qualquer eventual desvio de verba ou irregularidade na aplicação de recursos, mas o caso de Atoleiro mostra como, aos poucos, o governo federal perdeu grande parte de sua capacidade de executar obras estruturais, o orçamento acabou sendo municipalizado e transformado em instrumento de interesses e de lutas políticas regionais. A pulverização dos recursos também dificulta a fiscalização pelos órgãos de controle.
Voltando às formigas e aos danos que historicamente causam ao país, não custa lembrar também o que Mário de Andrade escreveu em seu romance "Macunaíma": "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são".