Muito prazer, sou o moderno Heitor

A exposição "Heitor dos Prazeres é meu nome" revela que ele está para as primeiras décadas do século 20 como Jean-Baptiste Debret esteve para os anos 10 e 20 do século anterior.

Por Fernando Molica

Quadro "Musa no ateliê", de Heitor dos Prazeres.

Você tem apenas mais uma semana pra dar uma chegada no CCBB do Rio, aproveitar o ingresso gratuito e conhecer boa parte da obra de Heitor dos Prazeres (1898-1966), injustamente colocado na prateleira dos pintores naïf, palavra paternalista e caridosa que designa artistas ingênuos, cheios de boa vontade e de pouca técnica.

Nada disso se aplica ao pra lá de moderno artista plástico, compositor, costureiro, designer de moda que tão bem ilustrou e interpretou uma cidade que transitava do rural para o urbano, em que a população negra procurava se adaptar ao período posterior à Abolição.

A exposição "Heitor dos Prazeres é meu nome" revela que ele está para as primeiras décadas do século 20 como Jean-Baptiste Debret esteve para os anos 10 e 20 do século anterior. Assim como no caso do francês, Prazeres trata do cotidiano da cidade — um Rio colorido, festeiro, alegre, religioso e trabalhador.

Num documentário de Antônio Carlos da Fontoura exibido na última sala da exposição, o artista se refere ao próprio sobrenome ao dizer do prazer que procura dividir com o povo: "Este povo que sofre, este povo que trabalha, este povo alegre que eu compartilho a alegria desse povo". 

Este povo é o povo negro que ele via nas ruas e da janela do seu ateliê na Praça 11 voltado para o Morro da Providência. Prazeres, como ressalta um dos textos que acompanham os quadros, via a favela de dentro. 

Seu olhar é parceiro, íntimo. Ao observar seus quadros, dá quase para ouvir os gritos das crianças que soltam pipa ou balão, a voz da mulher que parece pedir ajuda para pendurar a roupa no varal, o som que sai de tantos instrumentos e sentir o cheiro de um cachimbo.

Como ressalta a escritora e doutoranda em literatura Thaís Velloso, os negros de Prazeres são altivos,  olham pro alto,; os adultos estão sempre calçados, uma opção política do pintor que, negro como eles, assim os diferenciava dos escravizados que andavam descalços.

As mulheres usam vestidos cheios de cores. Sempre alinhados, muitas vezes de terno e gravata, os homens pintados por Prazeres parecem ecoar o ensinamento do contemporâneo Paulo da Portela (1901-1949), para quem sambistas deveriam ter pescoço e pés sempre cobertos. Ao mostrar uma Praça 15 povoada apenas por negros, o pintor reforça o viés político de seu trabalho: todos os lugares precisam ser ocupados.

Como nas composições de Cartola e de Nelson Cavaquinho, a  aparente simplicidade das obras de Prazeres é resultado de trabalho, não de precariedade técnica. Alguns quadros, como o "Musa no ateliê" e outro, sem título, que mostra um pintor em seu local de trabalho, apresentam perspectiva, cores e textura que remetem ao quarto de Van Gogh.

Como observou o pintor Nando Paulino, o uso de cores diferentes em nuvens já seria suficiente para retirar da obra de Prazeres o adjetivo naïf, que, no caso, chega carregado de um racismo construído para perpetuar lugares de exclusão.

Reprodução - Quadro "Musa no ateliê", de Heitor dos Prazeres.