Anistia dolosa

Política não foi feita para beneficiar políticos, não é — ou não deveria ser — uma entidade à parte, um clube fechado com o único objetivo de gerar benefícios para os seus sócios.

Por Fernando Molica

Política não foi feita para beneficiar políticos...

Ao combinarem aprovar proposta que anistia partidos políticos por diversas irregularidades em suas prestações de contas, deputados e senadores ajudam a confirmar o senso comum de que priorizam seus interesses.

É bom para a democracia que partidos tenham financiamento público, isso diminui a desigualdade na disputa e, em tese, elimina o investimento em candidatos feitos por empresas que, lá na frente, vão cobrar seu ressarcimento. O patrocínio privado de campanhas acaba sendo mais custoso para os cofres públicos.

O problema é que, entre nós,  políticos são excessivamente generosos na hora de doar dinheiro público para seus próprios projetos. Isso transformou a criação de partidos num grande negócio. Apenas em 2022, essas agremiações receberam um total de R$ 6 bilhóes, entre verbas para campanha eleitoral e para a manutenção de suas estruturas.

Pior é quando políticos de todas as tendências resolvem que não precisam prestar contas da aplicação desse dinheiro que saiu do bolso de cada um de nós. Volta e meia a imprensa divulga casos de uso indevido dessa grana — a tendência é de que os desvios e roubos sejam perdoados pelos próprios pecadores.

Política não foi feita para beneficiar políticos, não é — ou não deveria ser — uma entidade à parte, um clube fechado com o único objetivo de gerar benefícios para os seus sócios.

Caso aprovem a anistia, deputados e senadores agirão contra a sua própria existência, reforçarão as queixas dos que dizem que políticos são todos iguais, que não pensam no país. Abrirão caminho para novas aventuras daqueles que, de tempos em tempos, vestem a fantasia de salvadores da pátria. 

Mais do que movimentos ideológicos de direita, as vitórias de Fernando Collor de Mello em 1989 e de Jair Bolsonaro em 2018 foram resultado de um processo de indignação coletiva, de busca de um candidato que fosse contra tudo o que fosse identificado como poder.

Políticos parecem esquecer que, num caso de ruptura institucional (e estivemos bem perto disso), eles também perdem empregos e oportunidades. A história mostra que golpes e mesmo revoluções têm tendências autofágicas, é só ver o que aconteceu com tantos políticos que, em 1964, apoiaram a derrubada de um governo constitucional, entre eles, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, e que acabaram tendo seus direitos políticos cassados.

É fundamental punir todos os que atuaram na intentona de 8 de Janeiro, mas a necessidade dessas condenações não pode servir para esconder a irritação de muita gente com a atuação daqueles que deveriam nos representar.

Lembrar do que ocorreu em 2023 é necessário, mas também é bom não esquecer do que ocorreu dez anos antes, com a explosão de revoltas por todo o país, atos que demonstraram uma profunda insatisfação com o universo institucional.

Anistia, mais do que significar perdão, remete a esquecimento (isso fica evidente na etimologia da palavra). Ao tramarem uma anistia para erros, mas, principalmente, para delitos cometidos com dinheiro público, políticos colocam de cabeça para baixo o ato de anistiar e fazem um gol contra. O gesto, quando vier a ser concretizado, não indicará possibilidade de qualquer esquecimento, apenas reforçará a necessidade de lembrarmos sempre desse tipo de atitude.