Talvez pela pouca idade, talvez pela preguiça de ficar mais de cinco horas num cinema, não vi "1900", de Bernardo Bertolucci, quando foi lançado, em 1976. Outro dia, descobri que o filme estava num streaming e resolvi encará-lo.
O tema (ascensão e queda do fascimo na Itália, detalhes de uma luta de classes rural) e o período em que foi feito, os conturbados anos 1970, fizeram de "Novecento" (seu título original) um marco do cinema. O fato de que o Brasil vivenciava uma ditadura colaborou para sua popularidade entre nós.
As imagens, logo no início do filme, do quadro "O Quarto Estado", do pintor Giuseppe Pellizza da Volpedo (1868-1907), colaboraram para tornar "1900" uma referência. A reprodução da pintura que mostra uma manifestação de trabalhadores passou a ocupar, desde então, lugar de destaque em centro acadêmicos e residências de jovens que se identificavam com ideias de esquerda.
Assistir o filme quase cinquenta anos depois de seu lançamento é curioso. Chega a ser engraçado ver os jovens Robert de Niro e Gérard Depardieu e um inusitado Burt Lancaster. O mais interessante, porém, é olhar, com um certo distanciamento histórico, para um filme com intenções explicitamente políticas — Bertolucci foi filiado ao então poderoso Partido Comunista Italiano.
Ao tratar de tempos tão radicais como os que marcaram o surgimento do nazifascismo, o filme não escapa de um viés maniqueísta. Seria até uma falsidade histórica não reservar o papel de bandidos para Mussolini e seus seguidores — eles merecem —, mas o longa falha ao idealizar os camponeses, militantes de esquerda.
O longa acerta ao mostrar a parceria de empresários com o fascismo, mas erra ao identificar o regime com um homem mau e doentio. Attila, o personagem de Donald Sutherland, é um sujeito capaz de cometer crueldades inimagináveis. Ao caracterizá-lo como um exemplo daqueles militantes, Bertolucci deixa escapar um ponto fundamental: o movimento liderado por Mussolini só chegou ao poder graças ao apoio de milhões de italianos, pessoas comuns, como narra Antonio Scurati em seu ótimo livro "M, o filho do século" (Intrínseca).
A adesão ao movimento totalitário de extrema direita foi resultado de uma série de fatores históricos e sociais capazes de seduzir até mesmo ex-simpatizantes socialistas e comunistas. Foram homens e mulheres do campo e das cidades que, decepcionados com os rumos do Estado italiano, aderiram à retórica e às práticas violentas e destruidoras daquele que posava de salvador da pátria.
O perigo, como mostra Scurati, está menos nos canalhas esquisitões como Attila e mais nos tantos e tantos que se confudem na multidão. Gente como tanta gente que, integrada a uma turba, revela-se capaz de aderir ao horror e de cometer atrocidades. "1900" continua a ser um filme importante e sensível, que, apesar de suas limitações, não deixa de nos servir de alerta.