Por: Fernando Molica

Suicídio social

As masi variadas armas letais, usadas por forças militares e policiais e também disputadas pelo crime organizado. | Foto: Adobe Stock

O surgimento, a consolidação e a expansão das milícias no Rio demonstram o suicídio que uma sociedade comete ao, assustada com a violência, autorizar e estimular a polícia e organizações paralelas a torturar e matar bandidos.

A entrega da chamada carta branca vira fonte de um poder ilimitado e corrupto, que, como agora testemunhamos, ameaça até mesmo aqueles que permitiram e fomentaram o arbítrio, feitiço que se volta contra os feiticeiros.

Ninguém pode atuar sem qualquer controle, ainda mais quando a permissão é concedida pessoas que têm o direito de andar armadas.  

Há alguns anos, uma promotora da área criminal que atua na Baixada Fluminense me disse que, por lá, a milícia é herdeira direta da então chamada "polícia mineira": policiais que recebiam dinheiro de comerciantes para — atenção ao verbo — limpar a área. Ou seja, eram contratados para matar aqueles que eram apontados como ladrões.

Empoderados, com o tempo os tais justiceiros notaram que poderiam inverter a relação de poder: deixaram de ser empregados dos comerciantes para submetê-los às suas determinações. Trocaram a mesada pela extorsão, viraram patrões; empreendedores, abriram seus próprios negócios.

Na favela de Rio das Pedras, maternidade da milícia carioca, foi parecido. Homens armados, entre eles, policiais, passaram a, num primeiro momento, impedir o tráfico de drogas na comunidade, situação que foi vista por muita gente como algo saudável, um exemplo.

Afinal, a polícia já então se mostrava incapaz de controlar os traficantes que, armados, posavam de donos de muitas áreas na cidade. César Maia, então prefeito do Rio, chegou a classificar as milícias de "autodefesas comunitárias". 

Esta legitimação das práticas milicianas — que incluíam a execução de inimigos — fortaleceu ainda mais o discurso de que bandido bom era bandido morto e reforçou o absurdo viés negativo da expressão direitos humanos, associada à defesa dos marginais.

O berço da milícia foi embalado por muita gente, por todos os que aplaudiam a violência policial, que fingiam não ver os assassinatos cometidos por forças oficiais, que não demonstravam qualquer empatia com os cadáveres empilhados após operações em favelas. A milícia foi de carona nesta autorização dada à polícia.

O entusiasmo com o arbítrio e a indiferença com as vítimas — quase todas pretas e pobres — forjou um adjetivo para justificar a matança: "envolvido", palavra que acabaria legitimada pelo Estado e por boa parte da imprensa. Bastava a suspeita de que o morto estava envolvido com crime para que seu fim fosse até comemorado.

É compreensível que, diante da apatia do poder público em relação ao controle da violência, muita gente tenha perdido a paciência e desejado uma situação simples e eficaz para a criminalidade (todos tememos ser assaltados ou mortos).

O problema é que não há saídas simples, ainda mais num país tão desigual, racista e criado sob a violência institucional da escravidão — nossa história não é nada pacífica. Ao aplaudir a matança, ao eleger tantos políticos que verbalizam a barbárie, boa parte da sociedade ajudou a corroer as instituições policiais, a torná-las incontroláveis. Um descontrole que asfalta o caminho para a corrupção, para a associação com o crime e inspira milicianos.

 

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