A ótima série "Vale o escrito — A guerra do jogo do bicho" (Globoplay) tem, entre outros méritos, o de mostrar o risco da naturalização do crime e dos criminosos. Bicheiros mataram, corromperam policiais e políticos, mas foram aceitos e legitimados por boa parte da sociedade, inclusive por boa parte da imprensa.
Jornais sempre publicaram crimes atribuídos a bicheiros mas não deixaram de mostrar tolerância com esses mafiosos. Isto, pelo caráter popular e cultural do jogo do bicho e pela bem-sucedida campanha de relações públicas feitas pelos banqueiros, que distribuíam benesses em suas comunidades, patrocinavam clubes de futebol e escolas de samba.
Favorecidos pelo Código Penal (que classifica sua atividade de contravenção, não de crime), eles foram também hábeis ao institucionalizar a corrupção policial, azeitaram o caminho para algo, hoje, incontrolável. Mas é impossível manter algum equilíbrio quando se trata de convivência com a máfia, quase todo mundo perdeu a mão.
A série lembra que Waldemir Paes Garcia, o Maninho, morto em 2004, um dos mais cruéis integrantes do bando, foi matéria de capa da revista "Domingo", do "Jornal do Brasil". Sobre a foto do jovem montado numa moto, o título da reportagem: "O rei do Rio".
Ficou tudo junto e misturado. Castor de Andrade que bancava o Bangu e a Mocidade Independente, era o dono de uma metalúrgica que foi fornecedora do Exército. O Campeonato Carioca de 1989 do Botafogo só foi conquistado graças ao patrocínio do bicheiro Emil Pinheiro, coadjuvado pelo colega Luizinho Drumond.
Nos anos 1980, nós, jornalistas (eu, inclusive), recorríamos a um bicheiro, Zinho (José Petrus Khalil), em busca de notícias desse submundo. Tratado de "porta-voz da contravenção", Zinho ganhava codinome camarada nas reportagens: "Luciano Carlos Pereira". Preso, Castor foi visitado pelo presidente da Fifa, João Havelange; o governador Moreira Franco recebeu bicheiros no palácio. Um general, secretário de Segurança do Estado, pediu "Pelo amor de Deus", que anotadores do jogo não fizessem greve.
A fundação da Liga Independente das Escolas escancarou o problema. Como organizadores do evento, bicheiros passaram a negociar os direitos de transmissão dos desfiles: a Globo precisava conversar com eles, mas escorregou ao promover mesa-redonda com os caras falando de carnaval. Também não precisava transmitir o discurso em que Castor, na concentração da Mocidade, reclamou de supostas injustiças.
É preciso ter cuidado ao julgar o passado com os olhos de hoje. Basta ver a polêmica em relação, principalmente, a trechos racistas de livros, aceitáveis não faz tanto tempo assim. Piadas que humilhavam e ridicularizavam homossexuais e mulheres eram quase obrigatórias. Mas é preciso ficar atento às lições da história para que erros não sejam renovados; brincar com o fogo do bicho já deixou muita gente chamuscada,