A arma do pobre

O caso da PM paulista que se recusou a fazer o seu trabalho reforça que a popularização dos celulares com câmeras é talvez a principal arma da população pobre e negra contra os abusos do Estado, em particular, da polícia.

Por Fernando Molica

Não fosse o registro filmado em celular, do caso da PM paulista que se recusou a fazer o seu trabalho, talvez o desrepeito a mais um jovem negro passaria impune.

O caso da PM paulista que se recusou a fazer o seu trabalho reforça que a popularização dos celulares com câmeras é talvez a principal arma da população pobre e negra contra os abusos do Estado, em particular, da polícia. As imagens levantam também outra questão: vale imaginar o que se passava quando a violência contra pobres não eram filmadas.

O episódio, publicado inicialmente pela Ponte Jornalismo, é mais um dos tantos que revelam crimes cometidos em nome de uma ordem pública que sua atua para defender apenas uma parcela da sociedade. As imagens gravadas por um repórter fotográfico chegam a ser inacreditáveis — mesmo se sabendo filmada, mesmo questionada, a PM, que estava fardada, recusa-se a cumprir sua obrigação. De maneira cínica, diz que estava de folga e chega a chutar o jovem negro que, ameaçado de ser morto, foi até ela, a uma representante do Estado, pedir ajuda.

Apontado como responsável por furtos perto de acesso ao metrô da estação Carandiru — expressão que remete ao título do clássico livro de Drauzio Varella —, o adolescente foi rechaçado pela policial que, depois, não se constrangeu nem mesmo diante do jornalista que registrava a cena. Chegou a ameaçá-lo de prisão.

Pouco importa se o jovem em questão, que não estava com arma, era culpado. Como suspeito, apontado por outros cidadãos, poderia ter sido detido, levado para uma delegacia. Mas, nessas horas, o Brasil fala mais alto e trata de, mais uma vez, ilustrar o que tanto se sabe de preconceito, racismo e injustiça. Não é absurdo concluir que a PM queria mesmo que o adolescente fosse morto, mesmo que assim se tornasse cúmplice de um homicídio.

Vale comparar com o ocorrido em 2018, diante de uma escola de Suzano (SP). De folga — mesmo —, em trajes civis, a cabo Katia da Silva Sastre, que reagiu com tiros a uma tentativa de assalto de um bandido armado, que foi morto. Até se poderia questionar se a reação teria colocado crianças em risco, mas o fato é que a cabo agiu, a legislação permite que qualquer pessoa atire para defender a própria vida e a de terceiros. Graças à sua atuação, acabaria eleita deputada federal com 264 mil votos, chegou a usar as imagens de seu gesto na campanha. 

Em Suzano, a cabo agiu para defender os seus semelhantes, mães, crianças e funcionários da escola de sua filha (ainda correria o risco de ser identificada como policial pelo assaltante). Na estação Carandiru, o problema era outro: quem demandava a atuação da PM era um jovem negro, um possível bandido, não pessoas brancas como ela. Ficou, outra vez, evidente por quem dobram os sinos do Estado.

A questão não pode ser resumida a uma defesa ou não de bandidos. A garantia do cumprimento da lei e do respeito aos direitos de todos, humanos, é fundamental para cada um de nós. Ao autorizar que policiais matem suspeitos, a sociedade concede uma permissão que pode torná-la vítima.

Nenhum cidadão está livre do abuso estatal. A pele branca que a tantos serve de escudo (a mim, inclusive) não é blindada, impermeável à injustiça. Na perseguição que culminou com o holocausto, judeus ricos foram tão vítimas do nazismo quanto aqueles mais pobres. A violência policial anda abraçada com a corrupção: quem não teme ser punido por assassinato sabe que dificilmente será acusado de desvios; uma carta branca nunca é limitada.