Por: Fernando Molica

Restrições para todos

Praia carioca lotada | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A abordagem e detenção de jovens pobres para evitar a ocorrência de crimes nas praias poderia ser ampliada. A Polícia Federal passaria, de maneira preventiva, a revistar governantes, parlamentares e juízes e a fazer buscas em seus gabinetes, celulares e computadores mesmo sem ter qualquer indício de cometimento de algum crime.

Da mesma forma que no caso dos adolescentes revistados, bastaria a razoável convicção de que, entre aquelas muitas autoridades, algumas poucas estariam planejando desviar recursos do Estado.

A PF poderia também limitar suas buscas a casos potencialmente mais delicados. Parlamentares que destinam emendas para a Codesvasf estariam numa lista de prioridades. Afinal, volta e meia o nome da empresa surge em reportagens que tratam de desvios de dinheiro público. Tudo seria feito com base no precedente que permite abordar adolescentes que vão à praia.

O conceito poderia ser aplicado à iniciativa privada — o caso das Lojas Americanas comprova que não dá pra achar que cambalachos são restritos ao universo estatal. Não apenas fornecedores e grandes acionistas foram lesados pela operação contábil fraudulenta que quase quebrou uma das principais empresas do varejo brasileiro.

Funcionários que haviam recebido ações da empresa em forma de bônus e os tantos que perderam seus empregos em consequência da fraude bilionária também foram prejudicados. Há algumas décadas, o Banco Nacional quebrou de forma parecida, diante da constatação de falsidade em seus balanços e créditos. Valeria também dar algumas duras na Faria Lima, em personagens citados como grandes exemplos para o país. Vai que...

Líderes religiosos, suas igrejas, seminários e terreiros, também seriam alvo de operações preventivas. Tudo para evitar o abuso da boa-fé de cidadãos, os favores indevidos pelo poder público e os crimes sexuais: o histórico de algumas lideranças de diferentes crenças justificaria as abordagens. Comerciantes suspeitos de fraudes fiscais também entrariam nessa lógica de atirar primeiro e perguntar depois.

O leitor deve ter notado que este texto abusa da ironia e do sarcasmo, aqui presentes para ressaltar que a Constituição é clara ao dizer que ninguém será preso "senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente". Tem que valer o escrito.

Para que os nossos direitos — os meus e os seus, inclusive — sejam respeitados é preciso que as normas sejam válidas para todos. É injusto e cruel que tantos jovens pobres, quase todos negros, já tão discriminados numa sociedade desigual e injusta, tenham que ser submetidos a humilhações; sejam, de cara, considerados suspeitos.

É terrível e perigoso ser envolvido por arrastão ou confusão na praia, principalmente para quem está com crianças. As imagens são assustadoras. Mas o nosso lazer não pode ser garantido pelo desrespeito aos direitos alheios. Não dá, como canta Chico Buarque, mandar a polícia despachar "O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné". Como frisou na mesma canção ("As caravanas"), "Filha do medo, a raiva é mãe da covardia".

E, para terminar, vale citar Marcelo Yuka (1965-2019), uma vítima da violência urbana que nunca caiu na armadilha de defender soluções baseadas na discriminação: paz sem voz não é paz, é medo.

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