O cala-boca do Supremo Tribunal Federal
A decisão do Supremo Tribunal Federal que admite a punição de empresas jornalísticas pela publicação de entrevistas com falsas acusações a terceiros abre caminho para danos graves à democracia e à liberdade de imprensa.
O STF foi cuidadoso ao excepcionalizar casos em que as empresas podem ser condenadas. Será preciso provar que havia "indícios concretos da falsidade da imputação" e que o veículo deixara de "observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios".
As ressalvas são razoáveis, o problema é jogá-las na vida real. Alguém tem dúvida da veracidade das acusações que, em 1992, um empresário fez ao irmão, presidente da República? Seria possível negar a existência de um esquema de corrupção?
Investigado por uma CPI que apurou diversos crimes, o presidente foi derrubado, mas acabou absolvido pelo STF por falta de provas. E aí? O jeito será mantê-lo no anonimato?
As pedaladas processuais da Lava Jato geraram corretas anulações de processos como o que condenou um poderoso ex-deputado - isto impede que ele seja citado como beneficiário de esquema?
A Justiça invalidou, também por razões de rito processual, provas que demonstravam um — suposto — esquema de rachadinhas no gabinete de um então deputados estadual. Os dados era bem evidentes: funcionários-fantasma, pagamento, por um faz-tudo, de contas pessoais da família do parlamentar em dinheiro vivo de origem não evidenciada. Tudo muito claro mas imprestável para a Justiça. Não se pode publicar nada sobre isso?
A série 'Vale o escrito' traz personagens que negam participação em qualquer ilegalidade, mas que são apontados por entrevistados como corruptores e homicidas. A série será tirada do ar?
Como definir "falsidade da imputação"? A ausência de uma condenação será critério para classificar de inverídicas algumas declarações?
Outro ponto é a falta de "dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos". No jargão jornalístico, isso poderia ser interpretado como a não busca do outro lado, da versão da parte acusada. E se o acusado não quiser falar? E se for impossível descobrir quem são seus advogados?
É bom que se tenha cuidado ao atribuir crimes a suspeitos. Muitas vezes, a identificação de um suposto assaltante, estuprador ou homicida pouco acrescenta a uma reportagem e tem o poder de destruir vidas de inocentes.
Mas e no caso de pessoas públicas, de políticos? Nada poderia ser publicado até uma decisão transitada em julgado? A Lava Jato mostrou que muitas vezes, na busca da informação exclusiva, boa parte da imprensa deu destaque indevido a versões manipuladas. Mas seria correto omitir que o Ministério Público acusa um governador, presidente ou deputado de crime?
É evidente que veículos de comunicação — assim como qualquer cidadão, blogs e redes sociais — podem ser responsabilizados ao agirem de má-fé. Mas isso deveria ser visto caso a caso, com base em princípios gerais. Ao fixar limites que são subjetivos por definição, o STF legitima atitudes de juízes, em especial de primeira instância, que, ao arrepio da Constituição, vêm censurando reportagens que contrariam seus interesses ou de pessoas próximas. Na prática, o STF mostra que, por lá, o cala-boca não morreu.