Homenagem a filho de bicheiro mostra o jogo aberto na Câmara

Além de bicheiro, o pai do homenageado, Capitão Guimarães, é ex-oficial do Exército e participou da repressão aos grupos de esquerda que atuaram nos anos 1960 e 1970. Trinta anos antes, Pedro Ernesto seria uma de suas vítimas.

Por Fernando Molica

Luizinho Guimarães, herdeiro do Capitão Guimarães, costuma ostentar uma vida de luxo nas redes sociais, como essa foto em Dubai

A entrega da principal comenda da Câmara Municipal do Rio a Luiz Macedo Guimarães Jorge, de 25 anos, filho do bicheiro Capitão Guimarães, é mais um exemplo das pra lá de delicadas relações do universo político fluminense.

Ao justificarem a intenção de fazer a homenagem, os vereadores Matheus Gabriel e Alexandre Beça (ambos do PSD), citaram que o rapaz é presidente da escola de samba Unidos de Vila Isabel e que "atua firmemente em uma empresa de construção civil e em uma loja de decoração". Ressaltaram seu amor pelo samba e pelo Carnaval.

Mas não mencionaram a ligação de sua família com o bicho e sua intenção — por ele declarada na série "Vale o escrito" (Globoplay) — de herdar e administrar os negócios paternos ligados à contravenção.

Reprodução Instagram - Luizinho Guimarães, herdeiro do Capitão Guimarães, costuma ostentar uma vida de luxo nas redes sociais, como essa foto em Dubai

Ele ainda mostrou um quadro que decora seu apartamento. Feita sob encomenda, a pintura exibe os rostos de bicheiros célebres e referências à máfia americana. Luizinho, como é conhecido, não escondeu o jogo e ainda ressaltou seu gosto por uma vida luxuosa, construída com o dinheiro de jogos ilegais. Também não escondeu que está na Vila Isabel por influência do pai, patrono e ex-presidente da escola. 

Em maio, a polícia cumpriu mandados de busca e apreensão contra, entre outros, Guimarães e Luizinho. Os dois eram suspeitos de envolvimento no assassinato, ano passado, de um ex-aliado do bicheiro, o contraventor Wilson Moisés, também ex-presidente da Vila.

O requerimento em que a homenagem foi requerida traz o apoio de outros 21 vereadores, entre eles, o presidente da Câmara, Carlo Caiado (PSD), Carlos Bolsonaro (Republicanos), Cesar Maia (PSDB), Waldir Brazão (sem partido) e Zico (Republicanos). Apresentada no último dia 8 de agosto, a proposta foi aprovada, em votação simbólica, 17 dias depois. A entrega do conjunto de medalhas foi na última terça.

Controlada por bicheiros e representante oficial das escolas de samba do Grupo Especial, a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) tem o direito de negociar com o poder público, com empresas privadas, com emissoras de TV. Afinal, fala pelos donos da festa. Mas isso não apaga o óbvio: o jogo do bicho representa uma boa parcela do crime organizado no Rio, foi pioneiro na lógica da divisão territorial da cidade, corrompeu e corrompe policiais e outros agentes do Estado, é responsável por uma lista quase interminável de homicídios que nunca são esclarecidos.

Não há evidência de que o homenageado pela Câmara tenha participação em crimes atribuídos a bicheiros, mas até os postes do Rio sabem que ele só recebeu a medalha por ser filho de quem é, não por suas atividades empresariais. Ao condecorá-lo, o Poder Legislativo carioca reconhece e ressalta um outro poder.

A entrega do Conjunto de Medalhas Pedro Ernesto ao rapaz carrega uma ironia. A comenda leva o nome de um prefeito do Rio na década de 1930. Ligado a alguns dos movimentos revolucionários da época, Pedro Ernesto — que também dá nome à sede da Câmara Municipal — foi preso em 1936, acusado de participação no movimento comunista de 1935.

Além de bicheiro, o pai do homenageado, Capitão Guimarães, é ex-oficial do Exército e participou da repressão aos grupos de esquerda que atuaram nos anos 1960 e 1970. Trinta anos antes, Pedro Ernesto seria uma de suas vítimas.