Por: Fernando Molica

Assim no céu como na Terra

Fogos no céu de Copabana | Foto: Fernando Molica

Para quem não mora de frente para a Avenida Atlântica, acompanhar o réveillon por lá é um grande perrengue; mesmo assim, ano após ano, milhões de pessoas cumprem um ritual que tem a ver com a ideia de esperança, de recomeço.

Os fogos e os shows não seriam suficientes para tirar tanta gente de casas muitas vezes distantes. Mas há uma espécie de fantasia individual que ganha força com a presença da multidão. Como nos versos de "Prelúdio", de Raul Seixas, sonho que se sonha junto é realidade.

Cada um tem suas expectativas, seus desejos, suas necessidades. Como diz uma amiga, dá até pra notar as carências de acordo com a cor da roupa escolhida: vermelho remete à necessidade de encontrar um amor; amarelo demonstra a busca de grana.

O que vale é, insisto, a esperança. A ilusão de que ao fim da contagem regressiva e do início dos fogos teremos apertado um botão de start que apagará desavenças, frustrações e desenganos do ano anterior e que nos proporcionará um alvorecer de filme romântico.

Não é nada, mas pode ser muito, o empurrão necessário para uma tentativa de virada profissional, para o fim ou começo de um relacionamento, para o início de uma dieta ou da frequência a uma academia. Os fogos, o abrir espumantes, os abraços e beijos servem para criar um marco — afinal de contas, o universo está pouco se lixando para nossa decisão de considerar que o primeiro de janeiro é que marca mais uma previsível uma volta da Terra em torno do sol.  Trata-se de uma madrugada qualquer.

É igual, mas é diferente — a tornamos particular. E tome de rezas, orações, passes, oferendas, pulinhos de onda. É preciso deixar claro para o universo que, independentemente de sua arrogância, nós achamos que a virada do dia 31 para o dia primeiro é sim importante.

Daí o encantamento com os fogos, um espetáculo tão bonito quanto curto. A paisagem de Copacabana faz diferença, dá um brilho especial à festa. Mas seria difícil alguém atravessar a cidade ou mesmo algumas esquinas para assistir a um show de 12 minutos, mesmo que do Paul McCartney, do Chico Buarque, da Maria Bethânia, da Taylor Swift, de qualquer um.

Mas pegamos ônibus cheios, metrô que parece fazer favor de funcionar (dificulta a compra de bilhetes, fecha acessos de estações, recolhe seus ônibus), gastamos uma grana pesada em táxis e carros de aplicativos, atravessamos túneis a pé (e, agora, para chegar à praia, encaramos filas e acessos controlados por PMs). Tudo em nome, principalmente, dos tais 12 minutos.

É talvez a maior mobilização humana em torno de um evento tão curtinho e abstrato: fogos duram pouco, são lançados, iluminam-se por alguns segundos, e se apagam.  O espetáculo é uma grande obra de arte que só ocorre uma vez daquele jeito e naquelas condições e provoca sensações únicas para quem está por lá. Poucas obras de arte têm esse privilégio e essa capacidade de provocar tanto num espaço de tempo tão curto e de maneira tão abstrata. Não se trata de uma pintura, de uma escultura, mas do resultado de uma combinação até isólita, baseada na pólvora, mistura explosiva mais associada à guerra do que à paz.

Talvez essa contradição sirva de chave para melhores, próperos e pacíficos tempos. A energia dispensada nas batalhas (como as travadas diariamente no país) poderia ser direcionada para a construção de uma sociedade mais solidária e inclusiva: ao invés de gastar tanta pólvora no combate à violência estabelecida e à preservação de injustiças, trataria de desarmar essas bombas com educação, serviços de saúde, habitação, renda e combate a preconceitos. Transformar a matéria prima das armas em luz e festa não é assim tão complicado, basta querer. Depois do novo fiat lux seria hora de soltarmos mais e mais fogos.

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