Por: Fernando Molica

Fé não pode ficar acima da cidadania

Agora é lei, sancionada pelo presidente Lula: "Não é Não - Mulheres Seguras". | Foto: Divulgação

Agora é lei: ficou menos complicado constranger ou cometer violência contra mulheres em cultos e em outros eventos religiosos. A possibilidade é decorrente de um parágrafo de lei sancionada pelo presidente Lula (PT) que estabelece o protocolo "Não é Não", de prevenção ao assédio. A lei também cria o selo "Não é Não — Mulheres Seguras", que poderá ser concedido pelo poder público a estabelecimentos que se comprometam a seguir o protocolo.

Inspirado na acusação de estupro ao jogador Daniel Alves, o projeto da deputada Maria do Rosário (PT-RS) tinha um alcance mais amplo, estabelecia a prevenção do constrangimento em "discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas". Um também citava a necessidade dos cuidados em eventos esportivos profissionais.

Em sua tramitação, o projeto sofreu mudanças: os locais de prevenção foram mais delimitados,  passaram a ser apenas casas noturnas e de boates, espetáculos musicais realizados em locais fechados e shows — desde que "com venda de bebida alcoólica". 

O parágrafo sobre eventos esportivos foi descartado e, no seu lugar, a relatora, deputada Renata Abreu (Podemos-SP), incluiu: "O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa." O Ministério dos Direitos Humanos recomendou o veto presidencial a este dispositivo, mas Lula, preocupado em não criar atritos com evangélicos, ignorou o conselho.

As exceções estabelecidas na nova lei obviamente não revogam o que prevê o Código Penal em casos de ofensa ou agressões, mas reforçam o perigoso caminho de estabelecer que normas religiosas estão acima da cidadania. 

Há alguns anos, a resistência de evangélicos levou ao arquivamento de projeto de lei que previa a criminalização da homofobia: eles temiam a proibição de condenação à homossexualidade em igrejas. A ausência de um instrumento legal fez o Supremo Tribunal Federal, em 2019, equiparar esse tipo de preconceito ao racismo, punido por uma lei de 1989. No início de 2023, Lula sancionou mudança na lei para nela incluir a injúria racial, mas questões ligadas ao comportamento sexual ficaram de fora.

Religiosos têm o direito de interpretar o que consideram divino e de estabelecer normas para seus integrantes — casais formados por pessoas do mesmo sexo não podem se casar na Igreja Católica e na grande maioria das igrejas evangélicas. Mas é absurdo tentar estender essa proibição ao casamento civil, um direito do cidadão que paga impostos não pode ser eliminado.

Religiões que cultivam a ideia do pecado podem estabelecer interdições para seus fiéis, mas não podem fomentar uma discriminação, de raça, sexo, orientação sexual, o que for.  A história recente da humanidade é cheia de exemplos de tragédias movidas por essas e outras formas de preconceito. Uma religião não pode dizer que uns são melhores ou piores que outros, não está acima da Constituição que estabelece a igualdade entre todos. A leitura ao pé da letra da Bíblia levaria a uma autorização da escravidão.

Ao excluir eventos religiosos de  um sistema organizado de prevenção ao assédio e à violência que atingem mulheres, a lei consagra uma exceção à civilidade, estimula o que deveria dificultar. Ao recusarem o protocolo e o selo do "Não é Não", templos e religiões relativizam o que deveria ser sagrado e aceitam que o não pode ser um sim.

 

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