Por: Fernando Molica

Não é a chuva que mata

Chuva causou mais danos em áreas pobres | Foto: Divulgação/Comlurb

Diante da nova versão de uma repetitiva e previsível tragédia, vale ressaltar que, com as devidas exceções, não é chuva que mata. Em caso de temporais, as pessoas costumam morrer porque a encosta precária veio abaixo, o rio assoreado transbordou, a casa em área de risco foi alagada. De um modo geral, assim como no caso de vítimas da violência, morrem os pobres — e isso não é por acaso.

A chuva é democrática, seus alvos mudam de acordo com as condições atmosféricas, mas é derramada sem preconceitos sociais: um dia cai mais no rico Leblon; no outro, na favela de Acari. O problema não é o aguaceiro que chega do céu, mas o caminho dele na Terra.

Assim como as diferentes consequências de terremotos no Haiti e no Japão, os danos causados pela chuva variam de acordo com as condições de habitação de cada área. As imagens que registram os locais onde houve mais mortos são repetitivas, mostram feridas nos morros, o lamaçal que se acumula aos seus pés, a pobreza das habitações. 

Assim como outras revoltas da natureza, os temporais costumam ressaltar o que já é ruim e precário, o que não deveria ser considerado normal nem mesmo em condições ideais de temperatura e pressão.

Há algumas décadas, o jornalista e ex-dirigente comunista João Saldanha, pressionado a se candidatar à prefeitura carioca, recusou o convite. Disse que não tinha terno preto e, portanto, não teria como se vestir adequadamente nos sucessivos enterros de moradores de favelas mortos em temporais.

A chegada da alvenaria aos morros tornou as casas mais resistentes, diminuiu o impacto de algumas intempéries, mas o problema continua. A frase "Perdi tudo", tão comum nas reportagens de TV depois de tragédias como a do último fim de semana, sai quase sempre de bocas emolduradas por rostos negros e marcados pela pobreza.

São os pobres que moram em áreas de risco, em pirambeiras ou diante de valões, à beira de rios transformados em dutos de esgotos, em vias com arruamento precário. O descaso com as cidades é antigo: rios canalizados sem que se levasse em conta o aumento de volume causado pela chuva são comuns também em São Paulo e Belo Horizonte.

A construção de nossas cidades ocorreu de maneira similar às invasões dos colonizadores e como as hoje se repetem em florestas e no cerrado. O importante era conquistar espaços, retirar obstáculos (aí incluída a população local) e tentar domar a natureza.

Deu no que deu, no que dá. Com o tempo, os mais ricos se afastaram de áreas perigosas e o poder público tratou de investir em bairros mais ricos: basta comparar uma rua do Leblon ou Ipanema com outra de Bangu ou Campo Grande. O IPTU foi, ao longo do tempo, sendo transformado num imposto para aumentar diferenças , não para diminuí-las — como de resto funciona toda a lógica tributária brasileira.

Volta e meia, bairros mais elegantes da Zona Sul carioca ficam alagados depois de uma chuva forte. Mas, neles, são raras as notícias de mortes.

Virou lugar-comum na política brasileira dizer que governantes investem pouco em saneamento porque as tubulações ficam enterradas, não aparecem como túneis e viadutos. A conclusão é razoável, mas incompleta. O motivo principal é que esse tipo de obra favorece principalmente a população mais pobre, que costuma ser esquecida depois das eleições. 

 

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