Ao mostrar diferentes faces e papéis — alguns, muito cruéis — assumidos por Elizabeth II ao longo de 70 anos de reinado, a série "The Crown" ilustra o que talvez seja a principal razão de ser de uma obra de arte, a de permitir entender as razões do outro, do diferente.
Poucas instituições são mais anacrônicas que a monarquia, em especial a britânica, com seus ritos, fantasias e alegorias. É bizarro que pessoas, entre elas, o primeiro-ministro, sejam obrigadas a reverenciar quem tem a coroa. Mas a série ajuda a compreender o porquê de britânicos e cidadãos de outros 14 países conservarem o morador do Palácio de Buckingham como seu chefe de Estado.
Elizabeth encarnou muito bem o que se espera de um soberano. Rainha por acaso — chegou ao trono graças à abdicação do tio, Edward VIII, e à morte do pai, George III —, ela, segundo a série, não demonstrava qualquer ambição de reinar. Mas, coroada, tratou de agir como prevê a tradição, não vacilou em tomar medidas como as que colaboraram para a infelicidade da irmã, Margaret, obrigada a encerrar seu romance com um divorciado.
"The Crown" dedica um dos seus episódios para relatar o caso de Nerissa e Katherine, primas de primeiro grau de Elizabeth, que, diagnosticadas com doença mental, foram ignoradas pelos parentes e internadas em instituição psiquiátrica para que não afetassem a imagem da Casa de Windsor.
O peso da realeza se impôs também na criação do hoje rei Charles III, forçou o destino de Diana e ilustra a vida do rebelde príncipe Harry. A palavra "família" é repetida diversas vezes ao longo dos 60 episódios, quase nunca de maneira elogiosa.
Aos poucos, o espectador vai compreendendo a firmeza que se confunde com a crueldade. A monarquia que tanto luxo dá a um grupo de pessoas é uma instituição que pertence ao Reino Unido, a família real é uma propriedade do Estado, algo que, ao longo de gerações, dá sentido de pertencimento e orgulho a milhões de pessoas — fora o lucro que gera para as empresas locais. Daí o apego aos rituais, à existência de cargos como de guardião dos cisnes reais e de lavador de mãos do soberano.
Esse viés da monarquia como função pública fica ainda mais evidente quando os últimos episódios tratam de William, o futuro rei. Ele se revolta com as obrigações, procura repelir o assédio das jovens, manifesta ódio aos jornalistas, principalmente depois da morte trágica da mãe. Na escola e na universidade, evita o papel de celebridade, quer ser gente como a gente.
Mas, aos poucos, percebe que não tem opção. Numa cena decisiva, interrompe um almoço com a família da namorada para cumprir o que considerava uma obrigação, ficar ao lado da avó num evento oficial.
A série evidencia que sapos e lamaçais não podem ser ignorados em histórias de rainhas e de príncipes, mas mostra que há um sentido naquela papagaiada, um poder encarnado na coroa, the crown — objeto que, não por acaso, dá nome à série.