Por: Fernando Molica

O clube em que somos barrados

Uma sucessão de casos ocorridos nos últimos dias nos três poderes da República reforça a impressão de que o Brasil é uma espécie de clube fechado. A maioria dos brasileiros é sócia compulsória e contribuinte da tal instituição, mas acaba barrada na porta.

O clube reserva para alguns poucos, que agem como sócios-proprietários, direitos como o de frequentar piscina, sauna, quadra de tênis e restaurante — cuja conta não precisam pagar, a dolorosa é quitada pelos que são barrados.

A lista é grande, e começa com a suspeita de que a estrutura da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, foi privatizada durante o governo de Jair Bolsonaro, quando teve como uma de suas principais funções a de bisbilhotar a vida de adversários políticos. Naquela célebre reunião ministerial de 2020, o então presidente reclamara de falta de informações; a julgar pelas investigações da Polícia Federal, o problema acabou sendo resolvido de maneira informal e ilegal — com o financiamento até mesmo daqueles que tiveram suas vidas acompanhadas pelos arapongas.

Outro exemplo também no âmbito do Poder Executivo: segundo documento obtido pela Folha de S.Paulo, as Forças Armadas pediram uma grana extra de R$ 1 milhão por dia para continuarem a até aqui malsucedida tarefa de expulsar garimpeiros ilegais de terras dos Yanomami. Caberia a eles também entregar cestas básicas aos indígenas.

A cobrança gera um questionamento natural sobre o papel das FFAA num país que, felizmente, há décadas não se envolve num conflito armado. Vale lembrar que as três forças são instituições  permanentes e regulares, o que pressupõe seu emprego onde o governo achar necessário sem custos adicionais. Pelo orçamento apresentado, o país iria à falência caso se envolvesse num conflito — não haveria dinheiro nem para combustível de blindados, aviões e navios.

O país poderia aproveitar para discutir a aplicação dos recursos que destina para os militares: em 2023, mais de 80% do orçamento dos militares foram empregados no pagamento de salários, aposentadorias e pensões (nos Estados Unidos, esse gasto não chega a 40%, na França e Alemanha, fica em torno de 45%). Assim, sobra pouco para investimentos e, pelo jeito, nada para ações como a que vinha ocorrendo na Amazônia.

O sistema judiciário empata com as FFAA em percentual de gastos com pessoal — 80% dos valores que entram no seu caixa vão parar no bolso de funcionários em forma de salários e de pagamentos adicionais, os penduricalhos. A estrutura consome 1,6% do total das riquezas nacionais, quatro vezes mais do que a média internacional — o valor inclui despesas com o Ministério Público.

O Legislativo também não mede esforços para gastar como se fosse seu o dinheiro de nossos impostos. O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional para 2024 destinou R$ 53 bilhões para emendas parlamentares (verba que é direcionada por senadores e deputados) e R$ 4,9 bilhões para financiar a próxima campanha eleitoral. O exercício da democracia tem que ser bancado pela sociedade, o modelo de financiamento público dos partidos sai mais barato que o processo antigo, em que grandes empresas adiantavam o dinheiro que seria recuperado depois com o superfaturamento de obras e serviços. Mas é preciso ter limites.

O uso de recursos de todos para benefícios de alguns ilustra o que o ex-deputado Roberto Freire classificou de  privatização do Estado, algo que inclui, via incentivos fiscais, benefícios também para empresas e setores como o agronegócio. Não é razoável que um clube reserve para poucos o que deveria ser de todos.

E vale ressaltar: a história mostra que o abuso dos privilégios favorece, de maneira cíclica, movimentos de questionamento da própria democracia e que tendem a gerar sistemas autoritários — já vimos por aqui o filme que há pouco entrou em cartaz na vizinha Argentina. 

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