Por: Fernando Molica

Negras vozes de ontem, hoje e amanhã

Show da Estação Primeira de Mangueira | Foto: FM

Ao, no show da Mangueira, enfileirar Autonomia, Folhas secas e O meu guri, Chico Buarque matou a bola no peito, fez embaixadinhas, enganou zagueiros e marcou um golaço do meio da rua. Com essas canções, reafirmou uma herança, a trouxe para a atualidade e a jogou pra frente. Traduziu um projeto artístico-político-social que tem a ver com a própria obra e com a Estação Primeira.

Jequitibá, Mangueira tem sombras generosas e acolhedoras. Sala que recepcionou tantos bambas de outras escolas, recebeu, na quarta, artistas que trazem outras cores no coração, como Xande de Pilares, Pretinho da Serrinha e Dudu Nobre.

Mas fora a linda apresentação inicial da Velha Guarda, o repertório do show, até então, passava meio ao largo da estação de onde parte tanta força e tanta beleza. Até que Chico entrou em campo, cantou Cartola, Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito e um de seus mais belos sucessos. Naquele palco e diante daquela plateia, O meu guri fez tabelinha com o verso do samba-enredo de 2024 que fala "Das rosas que nascem no morro da gente/ Sambando, tocando e cantando/ Se encontram passado, futuro e presente", referência aos meninos e às meninas de Mangueira.

Flores que ainda sofrem com tanta pobreza e discriminação, algumas delas condenadas a um destino trágico como o do personagem da canção. Outras, brilhantes como Cartola, Nelson e outros incontáveis talentos que nos espantam consolam, emocionam e alegram. Uma lembrança que joga pro enredo de 2022, que além do compositor de O mundo é um moinho, reverenciava Jamelão e Delegado — uma história puxa a outra, estamos falando de ancestralidade.

Ao usar o pronome possessivo na música, Chico ressaltou que os guris e gurias — de Mangueira ou não — são de todos os nós, deveriam ser tratados com um sentimento que mistura responsabilidade e afeto. No samba que brilhará na Avenida, a citação às rosas remete à homenageada deste ano, Alcione, uma das fundadoras da Mangueira do Amanhã, escola infantil que revela muitos craques, como o mestre-sala mirim que se apresentou no show.

Nascida no Maranhão, a cantora se integrou à Verde e Rosa como se tivesse nascido às margens da Rua Visconde de Niterói. Porta-voz (e que voz!) de tradições negras, carrega com a vida e canções a bandeira de tantas lutas femininas, relacionadas ao trabalho e também ao amor.

Não é simples entender o universo das escolas de samba, entidades que reúnem e reinventam tradição e apostam na modernidade; afirmam culturas perseguidas e dialogam com o poder; promovem avanços e administram recuos.

As escolas são exemplo para a construção de uma sociedade que seja capaz de afirmar, integrar e miscigenar etnias e culturas; de reinventar formas de expressão; de reunir saber, estudo, trabalho, prazer e talento: nelas sempre surgem jovens de grande valor, garotos e garotas com o mesmo sangue nas veias, os nossos guris.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.