Para que o país seja fiel à histórica luta pelas Diretas Já é preciso acabar com a eleição indireta para o cargo mais poderoso da República, o de presidente da Câmara dos Deputados. Em seu discurso na abertura do ano legislativo, o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), bancou que quem manda no dinheiro público — ou seja, no país — é o Congresso Nacional.
Pela visão de Lira, o presidencialismo previsto pela Constituição e referendado em 1993 é um biombo de um parlamentarismo que não ousa dizer o próprio nome, até porque não quer saber de assumir as responsabilidades de governo.
O que está em jogo não são políticas públicas, opção por este ou aquele modelo de gestão, discussões sobre maior ou menor presença do Estado na vida nacional. A disputa é por verbas, pelo direito de o Congresso ignorar sua função primordial de fazer leis — daí ser o Poder Legislativo — e assumir funções do Executivo
Deputados e senadores que tanto reclamam de usurpação de suas funções pelo Judiciário acham normal retirar atribuições da Presidência da República. É até admissível que parlamentares possam destinar alguma verba para suas bases, mas o que passou a ocorrer nos últimos anos representa uma absoluta distorção da lógica de governo.
O direito de os parlamentares definirem o destino de cerca de 25% do pouco dinheiro que sobra para investimentos contraria princípios mínimos da administração pública. E não vale repetir a lenga-lenga de sempre, a de que deputados e senadores conhecem melhor as prioridades de suas bases. Para isso existem governadores e prefeitos, que dispõem de uma série de mecanismos de transferência de renda para estados e municípios.
Mesmo que não sejam levados em conta eventuais desvios facilitados pela pulverização de verbas oriundas de emendas parlamentares, não dá pra imaginar que um país desse tamanho seja formado por um conjunto de milhares de unidades autônomas, cidades que seriam quase soberanas, como peças de um quebra-cabeças sem identidade.
Governos centrais existem para definir e executar políticas públicas amplas, que devem levar em conta interesses regionais, desde que subordinados ou pelo menos ligados a objetivos mais genéricos. Distribuir verbas tendo como critério fundamental o atendimento interesses paroquiais inviabiliza projetos que encarem o país como um todo.
Essa história de fazer de cada deputado e de cada senador uma espécie de prefeitão mina o processo institucional, consagra a lógica dos negócios entre amigos. Cidade que tem prefeito adversário do deputado da região acaba prejudicada; há também casos em que as emendas são enviadas para instituições privadas, para que não caiam em mãos de governantes locais tidos como inimigos.
Dono do privilégio de iniciar um processo de impeachment de presidente da República, respaldado pelo apoio dos deputados irrigados por tantas verbas, Lira tem noção do próprio poder, força que precisa em parte manter mesmo depois que deixar a presidência da Câmara, daqui a um ano. Como não sabemos quem será o novo manda-chuva, melhor é radicalizar e garantir o direito de eleger o futuro senhor das verbas.