A serventia da herdeira do SNI
A suspeita de que a Agência Brasileira de Inteligência foi utilizada para favorecer Jair Bolsonaro e filhos demonstra a necessidade de uma discussão sobre o papel do órgão, herdeiro do Serviço Nacional de Informações criado pela ditadura em 1964.
Espécie de nave-mãe de uma rede criminosa de espionagem, o SNI, no início dos anos 1980, chegou a ser chamado de "monstro" por seu criador, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987). O órgão simbolizava o que o então deputado federal Miro Teixeira, candidato ao governo do Rio em 1982, classificou de "maldita comunidade de informações".
Em tese, a Abin tem o objetivo de "fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão". Isso tem sido feito? Esta semana, o presidente Lula admitiu não se sentir seguro ao fazer indicações para o órgão, faltou dizer se considera essencial a existência de uma estrutura tão delicada e nebulosa. Será que Lula, em seus mandatos, recebeu da Abin informações e análises tão relevantes assim?
O fato de ter nascido de uma costela do SNI carimba na Abin uma espécie de pecado original e gera dúvidas sobre seu comprometimento com suas funções.A arapongagem que teria sido conduzida por Alexandre Ramagem, seu então diretor-geral, revela que a tentação da clandestinidade e a execução de atividades ilícitas permanecem no DNA da agência.
Um órgão, em tese, dedicado a coletar informações de maneira legal e de processá-las — daí a ideia de "inteligência" — não deveria ser identificado com a bisbilhotagem, sequer deveria ter equipamentos como o que supostamente foi usado para rastrear pessoas adversárias de Bolsonaro.
O fato de uma assessora do vereador Carlos Bolsonaro ter recorrido à Abin para obter informações de inquéritos da Polícia Federal demonstra que ela sabia bem o que a agência era capaz de fazer. Em 2020, Ramagem, como diretor da Abin, participou no Palácio do Planalto de uma reunião com Bolsonaro, o general Augusto Heleno (então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e advogadas do senador Flávio Bolsonaro. A conversa era sobre investigações que envolviam o filho do presidente. Por que a Abin tinha que se meter nisso?
Só o fato de a imprensa precisar, o tempo inteiro, esclarecer que à Abin não cabe fazer investigações demonstra que há uma confusão muito grande sobre o papel institucional da agência. E a desconfiança é pra lá de factível, e não vem de agora: em 2008, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar escutas ilegais de ministros do Supremo Tribunal Federal, esquema que teria sido comandado pela Abin.
Um dos chamados a depor foi o ex-diretor da Abin Paulo Maurício Fortunato Pinto que, em outubro passado, acabaria afastado da agência por ordem do STF, suspeito de ter participado da espionagem que teria sido conduzida durante o mandato de Bolsonaro. Fortunato Pinto, veja só, é ex-agente do SNI.
É essencial investigar se a Abin sob o trio Bolsonaro/Heleno/Ramagem atuou de forma ilegal, se foi utilizada como escritório de detetive particular, crimes têm que ser apurados. Mas é preciso saber se, no dia a dia, ela cumpre com suas funções ou fica tocando a bola pro lado, fazendo análises rasteiras para as quais ninguém dá bola e, entre um documento e outro, seus agentes tratam de espionar aqueles que lhes sustentam.