A caça à baleia da democracia

Por Fernando Molica

Presença de homem com faca preocupa assessoria de Bolsonaro

As investigações da Polícia Federal mostram que Jair Bolsonaro, suspeito de importunar uma baleia jubarte, molestou, melindrou, atormentou, perturbou e feriu algo ainda maior, a democracia brasileira. As provas e evidências recolhidas evidenciam que o então presidente, fiel às posições que sempre defendeu, conspirou de maneira explícita para promover um golpe de Estado.

O material entregue à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal demonstra também o descomprometimento de parte da elite militar com a soberania popular. As ofensas do general Braga Netto dirigidas a colegas que honraram suas fardas ao recusarem a trama golpista são um ataque à compostura, ao respeito e à lealdade sempre destacadas em notas das Forças Armadas. Um atentado ao pundonor, para usar linguagem castrense.

Acostumados com benesses historicamente conquistadas graças à tutela que exercem na vida brasileira especialmente depois da Proclamação da República, setores importantes das Forças Armadas não abrem mão do poder autoconcedido de definir o que é melhor para o país. Como ressalta o historiador Paulo César Gomes na edição de hoje do Correio Bastidores, militares estiveram presentes em todas as crises político-institucionais da República, algo intolerável em qualquer democracia.

Contaminados por um anticomunismo que resiste à evidência histórica do fim do comunismo, melindrados com a criação da Comissão da Verdade por Dilma Rousseff,  militares resistem até em reconhecer a obviedade da implantação de uma ditadura em 1964: 60 anos depois da deposição do presidente constitucional, a sociedade brasileira ainda é obrigada a conviver com a possibilidade de, a cada 31 de Março, funcionários públicos fardados decidirem se vão ou não emitir notas para comemorar a quebra da legalidade.

Militares conseguiram garantir impunidade aos criminosos que agiram nos porões da ditadura, foram responsáveis pela não apuração do atentado terrorista ao Riocentro (ocorrido depois da anistia) e ainda conquistaram privilégios na Assembleia Nacional Constituinte: impuseram um artigo, o famoso 142, que deixa margem para dúvidas sobre seus limites institucionais.

Embarcaram de cabeça na candidatura presidencial de um ex-capitão indisciplinado, que fora obrigado a pedir para sair da carreira militar. Em 1988, editorial do Noticiário do Exército afirmou que Jair Bolsonaro e outro capitão "faltaram com a verdade e macularam a instituição militar" — 30 anos depois, o dito ficou pelo não dito. 

Em 2018, aproveitaram a porteira escancarada por tuítes contra Lula publicados pelo então comandante da Força, general Eduardo Villas Bôas, para apoiar Bolsonaro. Na época, alegaram inconformismo com a corrupção — na prática, apenas contra aquela que remetia ao PT. 

Ao associar indisposição para o combate à decisão do comandante do Exército, general Freire Gomes, de não entrar na trama golpista, Braga Netto, então candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, reiterou um dos graves equívocos do Exército: o de considerar que a luta política é um campo de batalha de verdade.

O então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, cometeu a mesma bobagem ao utilizar termos militares — linha de contato, linha de partida —  para definir uma disputa que deveria passar longe de suas preocupações. O Brasil, ainda bem, não se envolve há décadas em conflitos bélicos, mas isso não dá aos fardados de ocuparem o tempo livre se metendo onde não devem. 

A investigação da PF abre uma oportunidade única para o país discutir o que quer dos militares, que precisam ser subordinados ao poder civil. O desperdício desta oportunidade histórica será algo imperdoável.