Tão grave quanto a tentativa de golpe é a possibilidade de que tal virada de mesa tivesse ficado viável. Punir os golpistas é fundamental, mas é preciso afastar de vez o fantasma de tamanho risco, e isso passa por mudanças na formação dos militares e na redefinição de seu papel na vida brasileira.
A bagunça institucional promovida pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) fez com que, em 2021 e 2022, fosse normalizado algo inadmissível numa democracia: a divulgação de sucessivas notas de comandantes militares e do Ministério da Defesa tratando de questões políticas.
Não cabe a militares da ativa darem palpite sobre questões institucionais, eles não têm o direito sequer de declarar comprometimento com a manutenção do que determina a Constituição: este tipo de posição indica a possibilidade de opção diversa, é como se o respeito às regras fosse apenas uma opção.
É inconcebível imaginar militares de democracias consolidadas divulgando notas oficiais em que tratem de reafirmar seu compromisso com as leis.
Ao longo do mandato de Bolsonaro, a simples emissão de tais documentos indicava que, sim, havia a possibilidade de funcionários públicos fardados se envolverem em um novo golpe. Tratava-se, portanto, de um paradoxo: ao negarem objetivos golpistas, eles, na prática, diziam que poderiam botar os tanques na rua.
A situação chegou a lembrar a ocorrida nos últimos anos da ditadura: entre o fim dos anos 1979 e até por volta de 1985 era comum que os então ministros militares fossem questionados por jornalistas sobre as possibilidades e os limites da democratização do país.
A imprensa comparecia em peso a solenidades militares apenas para poder perguntar ao general, ao almirante ou ao brigadeiro se o processo de abertura estava garantido, se haveria eleições para governador em 1982, se, caso fosse eleito, o ex-exilado Leonel Brizola poderia tomar posse no governo do Rio.
Todos os repórteres e editores da época sabiam (sabíamos) os nomes dos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica, era conveniente saber quem ocupava os comandos militares mais importantes. A situação era tão delicada que, dizia-se, o último general-presidente, João Baptista Figueiredo, cultivava uma senha para um autogolpe e o endurecimento do regime.
Sempre que contrariado com os rumos da abertura, ele ameaçaria "Chamar o Pires", uma referência à eventual convocação do ministro do Exército, Walter Pires, para que este acabasse com a farra de uma ainda incipiente democracia.
Militares usaram seu poder de ameaça para conduzir a passagem do poder para os civis. Em 1985, escolhido para ser ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves atuou até para definir quem assumiria a Presidência no lugar de Tancredo Neves, hospitalizado horas antes de subir a rampa do Planalto.
Influentes também no processo de elaboração da Constituição de 1988, militares conseguiram que o artigo que define suas funções tivesse uma carga de dubiedade capaz de alimentar delírios golpistas legitimados por juristas que estão sempre dispostos a bulir com granadeiros.
Ao que tudo indica, Bolsonaro não ficou na ameaça de Figueiredo: chamou Braga Netto, Freire Gomes, Baptista Junior, Garnier, Nogueira de Oliveira, conseguiu adesões, mas não uma unanimidade, algo que seria decisivo para a vitória golpista.
Apurar e condenar as vivandeiras alvoroçadas que ameaçaram o país não basta. Os poderes Executivo e Legislativo têm a obrigação de deixarem claros as funções e os limites dos militares. As trapalhadas e os abusos cometidos por chefes militares nos últimos anos criaram a oportunidade perfeita para acabar de vez com esse vespeiro. Como repete Wander Pires, intérprete da campeã Viradouro, a hora é essa.