Problema da USP não justifica o fim das cotas

Por Fernando Molica

O fundamental é que acidentes de percurso como o da USP não sirvam de desculpa para interrupção das cotas.

O caso do jovem que optou por entrar na faculdade por cotas e foi barrado pela Universidade de São Paulo por não ser considerado pardo tem sido, aqui e ali, apontado como exemplo do erro da política de inclusão. Deveria exemplificar o oposto: revela que, enfim, estamos encarando a exclusão e os desafios para superá-la.

Num país tão miscigenado, não é simples definir quem é preto, pardo ou branco. Mas, como me disse uma amiga há alguns anos, policiais e porteiros de prédios nunca tiveram dúvidas na hora de discriminar. Não é razoável que se fale na impossibilidade de dizer quem é quem no momento de conceder uma ainda limitada compensação a descendentes de escravizados.

No início das cotas, valia apenas a autodeclaração, quem se dizia negro (preto ou pardo) era considerado apto para as vagas reservadas. Diante de abusos, algumas universidades decidiram apertar o cerco e criaram parâmetros para definir quem poderia ou não usufruir da concessão.

É óbvio que tribunais raciais, como são pejorativamente citados, não representam a melhor solução, mas, por enquanto, não há outra. Fazer testes para definir a origem étnica de candidatos seria ainda mais delicado e improdutivo. Nem sempre a ancestralidade negra gera sinais marcantes para a descendência.

É justo que essa forma de discriminação positiva beneficie os que mais sofrem com o racismo. Como contou o escritor Paulo Scott em seu romance "Marrom e amarelo", até mesmo entre irmãos essas diferenças existem e são devidamente hierarquizadas pelo meio social: os mais pretos são mais discriminados do que aqueles que têm fenótipo compatível com o de pessoas brancas. 

O fundamental é que acidentes de percurso como o da USP não sirvam de desculpa para interrupção das cotas. Ao longo de séculos, a elite branca não teve pudores em escravizar e em discriminar os libertos e seus descendentes. Uma tarefa faciliada por uma característica histórica: nas Américas, a escravidão teve cor, a cor do preto e a cor dos indígenas. Não foi como no caso de outros povos em que o fenômeno se deu até entre integrantes de etnias próximas

A diferenciação de cor facilitou a construção do país do jeito que tais elites quiseram: brancos pra cá, negros e indígenas pra lá. Um projeto tão bem sucedido que pode ser comprovado em cada esquina, os mais ricos são sempre os mais brancos; as taxas de pobreza são proporcionais à maior presença de melanina na pele.

Isso permite que, num hospital, saibamos quem são médicos, auxiliares de enfermagem e faxineiros mesmo sem prestar atenção em seus uniformes — a hierarquia não está só no crachá ou na roupa de cada um, está estampada na cara dos funcionários.

Diminuir o tamanho desse abismo que tanto mal faz ao país é tarefa essencial, que precisa ser aprofundada. O preconceito e as diferenças sociais são de tal monta que prejudicam até os que ficam nas partes superiores da pirâmide: calcule, leitor, o quanto você gasta com serviços particulares de saúde, educação, transporte e segurança para avaliar o tamanho do buraco em que o racismo e a busca pela separação nos meteram. Um buraco criado para negar direitos aos mais pobres, e pretos.

Além de permitirem alguma reparação histórica, as cotas viabilizam uma possibilidade de futuro, injetam esperança na vida de jovens antes praticamente condenados a exercerem funções subalternas. Se você é contra as cotas por as considerar injustas, troque de posição até por oportunismo. Um país com menos desigualdades será melhor para todos, como sabem os brasileiros que vivem em Portugal.