Escrito entre março de 2020 e maio de 2021, durante a pandemia da covid 19, o romance "Último olhar" (Companhia das Letras), do português Miguel Sousa Tavares, reaviva a experiência de um horror tão próximo e que, às vezes, parece distante. A ficção nos ajuda a revisitar fatos, traz um olhar que permite reavaliar dramas e absurdos.
É até difícil acreditar que, há três anos, estávamos assustados, tristes, confinados, enlutados; toureávamos o medo, a morte, a desinformação e a irresponsabilidade assassina.
A pandemia é abordada no primeiro capítulo e volta a se fazer presente na metade final do livro. É quando um dos protagonistas, o médico italiano Paolo, diz para a namorada frases como as que tanto ouvimos: "Cada dia é pior do que o outro. Ouvi agora na rádio: quinhentos e oitenta e dois mortos em Itália ontem. E catorze só na minha enfermaria".
Tavares recupera também a atuação dos negacionistas, "para quem tudo não passava de uma monstruosa invenção, uma conspiração mundial das esquerdas e da pedofilia internacional (...)". Ressalta a canalhice de uma cientista portuguesa que, no início da pandemia, disse que o coronavírus era um vírus bonzinho, que só matava velhos, crueldade que nos é muito familiar.
O livro tem como mote um fato real: em março de 2020, ambulâncias que transportavam idosos infectados para um abrigo na cidade espanhola La Línea de la Concepción foram apedrejados por pessoas que temiam a proliferação do vírus. Tavares colocou entre os alvos da turba um veterano da Guerra Civil Espanhola, Pablo, que na adolescência fora internado num campo de concentração nazista. Sobrevivera ao horror do Holocausto e, décadas depois, via-se diante de outro grande desafio e de uma nova onda de intolerância.
"Último olhar" é um romance desigual, alterna belíssimas e emocionantes passagens com momentos menos inspirados, alguns focados na recuperação de episódios históricos. São dados interessantes, mas que volta e meia quebram uma narrativa centrada nas reações de pessoas comuns a uma pandemia que parecia anunciar o fim da história.
Com as dezenas de milhões de vítimas fatais da doença morreram também incontáveis e infinitos sonhos, desejos, projetos, angústias, alegrias, tristezas. O livro trata de alguns poucos personagens, homens e mulheres que tiveram suas vidas ameaçadas, que foram obrigadas a encarar a desumanidade, a arrogância e a ignorância.
Ambientado na Espanha, "Último olhar" poderia se passar no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo. Mais do que tratar da pandemia, o livro aborda a mediocridade humana, que teima em se renovar ao longo dos séculos.
Ao oferecer uma leitura particular de fatos tão recentes, o romance também serve de alerta para que não nos esqueçamos o que houve, para que lembremos do vírus e também dos seus cúmplices, aqueles que colaboraram com a matança.