Os budas que continuam safados e felizes
"A casa dos budas ditosos" desafia os que pregam que a arte trate de uma vida idealizada, e não como ela é. A peça levanta uma série de questionamentos, mas não ousa julgar o comportamento da personagem.
Vinte e um anos depois de sua estreia nos palcos, "A casa dos budas ditosos" demonstra ter envelhecido muito bem. Baseado em romance de João Ubaldo Ribeiro lançado em 1999, o monólogo relata memórias das (muitas e variadas) aventuras sexuais de uma mulher de 68 anos.
A peça continua a manter o interesse do espectador, a desafiar preconceitos, a provocar risos, reflexões e algum incômodo — não é pouco. O tempo fez com que o texto passasse a servir também como referência de uma época. Lançado em 1999, o livro carrega questionamentos e posturas libertárias típicos daqueles tempos, como o direito ilimitado ao prazer, o que incluía o consumo quase banalizado de cocaína.
Alguns comportamentos narrados com detalhes pela personagem perderam parte de seu caráter transgressor. É razoável arriscar que o texto provoque mais riso — nervoso em alguns momentos — do que excitação. Isto, apesar da conclamação que a personagem faz no fim da peça, um pegai-vos uns aos outros.
O avanço do conservadorismo registrado nos últimos anos entre nós torna impressionante que, há um quarto de século, um escritor já então reconhecido e respeitado — o monumental "Viva o povo brasileiro" é de 1984 — tenha escrito um livro com tamanha ousadia, no tema e na linguagem.
Não é absurdo pensar que, caso fosse lançado em 2024, exemplares do romance seriam queimados em praças, banidos de universidades e de bibliotecas, tivessem suas páginas arrancadas em público por pastores e parlamentares. O doce João Ubaldo (1941-2014) seria equiparado à pior versão possível do Coisa Ruim, uma ameaça à família brasileira.
Chega a ser difícil imaginar que a pra lá de talentosa Fernanda Torres tivesse, nos dias de hoje, tranquilidade para estrear uma peça que toca em questões tão íntimas, de forma tão direta. O público assim perderia a chance de ver as nuances que ela, sentada numa cadeira, diante de uma mesa e de um microfone, consegue imprimir à personagem.
É provável que, caso subisse agora pela primeira vez aos palcos, a peça provocasse um mal-estar também em setores progressistas diante do relato de um caso explícito de pedofilia, um relacionamento abusivo provocado por um tio da personagem, mas por ela estimulado.
"A casa dos budas ditosos" — que estará no no Teatro Multiplan até esta quinta — desafia os que pregam que a arte trate de uma vida idealizada, e não como ela é. A peça levanta uma série de questionamentos, mas não ousa julgar o comportamento da personagem.
O livro e o monólogo — dirigido por Domingos de Oliveira — tratam de uma mulher que ousou viver do jeito que achava melhor e que, como frisa, não fez mal a ninguém. Por mais delicadas que sejam algumas passagens, o importante é que ela viveu para contar. Hoje, tanto tempo depois, a montagem reafirma o direito de viver e o de narrar; vale o escrito, cada um que tire suas conclusões.