Por: Fernando Molica

Crimes, culpas e castigos

Livros "Heroína, mon amour" e "Aí onde não cabe" tratam de mortes e de culpas | Foto: Reprodução

Conviver com a culpa tende a ser algo tão ou mais complicado que o gesto de matar. O ato de apertar o gatilho desperta uma série de consequências para a vida do assassino, mesmo em países como o nosso, em que o homicídio foi banalizado, passou a ser praticado de maneira cotidiana por organizações criminosas e por agentes do Estado.

Mais complicado ainda é quando há sobre a tragédia nuvens que dissimulam a culpa. Qual é a responsabilidade dos que não impediram aquelas mortes, como lidar com crimes que foram supostamente cometidos por omissão ou por pessoas próximas, como o próprio pai?

É sobre essas delicadas questões que se debruçam o romance "Heroína, mon amour" (Kotter), de Márcio Menezes, e a novela "O anjo ouve os noturnos", que integra o livro "Aí onde não cabe" (Patuá), de Alexandre Brandão.

O mote do romance de Menezes é simples e trágico: por se sentir culpado pela morte, num acidente, da mulher e do filho — no momento da desgraça ele estava com uma amante, num motel —, o personagem embarca numa viagem de autopunição para Berlim que inclui a proposta de suicídio provocado por overdose de heroína.

Curto, 108 páginas, o livro é ágil e contundente. Menezes tratou de, na escrita, traduzir os fluxos de pensamento e de ação de um personagem que, apesar de ensandecido, consegue estabelecer uma lógica para seu destino; conclui que só a própria morte seria capaz de redimir a culpa que assumira. Não havia outro caminho a seguir senão a ida para a cidade que foi berço de tragédias como o nazismo e que se reconstruíra com a destruição do Muro.

Em Berlim, ele se depara com a possibilidade de uma redenção pelo amor, o que parece não afetar a busca de um objetivo maior — a morte, como numa paráfrase dos versos tão questionados do hino alemão, estava acima de tudo.

Narradora de "O anjo não ouve os noturnos", Clara embarca em outro tipo de viagem, busca reconstituir o passado de seu pai, morto recentemente. Um homem de muitos mistérios e poucos afetos — um anjo torto que gostava dos Noturnos de Chopin, que traçara para sua vida uma partitura cheia de ausências que, aos poucos, revelariam a existência de mortes.

Clara viaja para mais perto, é no interior do Estado do Rio que encontra pistas e personagens relacionados ao pai, vai em busca de uma possível ex-amante e de uma provável meia-irmã, existências reveladas e, ao mesmo tempo, ocultadas em um envelope deixado pelo pai numa gaveta do trabalho.

Como em "Heroína, mon amour", a novela tem uma pegada de livro policial, o leitor é convidado a participar das buscas. E, como costuma ocorrer nesses casos, fictícios ou reais, percebe que, mais do que descobrir seu pai, Clara levanta suas próprias histórias, algumas que jamais serão resolvidas, ficarão em aberto. Por mais incerta que seja a próxima viagem, o futuro também ajuda a preencher o passado.