Por: Fernando Molica

Não se briga com a natureza

Sobe para 161 número de mortes por chuvas no Rio Grande do Sul | Foto: Divulgação

A tragédia no Rio Grande do Sul mostra que é preciso tratar a natureza como parceira e não como inimiga. Há uns 15 anos, um agrônomo da Embrapa me disse que considerava absurdo haver no Brasil o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, Dnocs. "É como se no Alasca houvesse um órgão público dedicado a lutar contra o gelo", argumentou.

Alegou, como a neve num dos extremos do planeta, a seca é um fenômeno natural e que é inútil tratá-la como adversária. O correto, explicou, é encontrar maneiras de adaptar a vida humana a uma situação pouco convidativa.

Ele, nordestino, não negou a importância de construção de açudes ou de obras como a transposição. O que ressaltou é a necessidade de adequação": no semi-árido, frisou, a criação de caprinos era mais adequada do que a insistência em plantações que dependiam de chuva sempre incerta.

De um modo geral, as civilizações foram construídas num processo que mistura luta com a natureza e adaptação a muitos de seus ditames, um processo dialético que leva em conta os limites do ser humano e do meio ambiente.

O domínio de tecnologias mais poderosas permitiu que, especialmente a partir do século 20, a humanidade tenha mandado às favas alguns escrúpulos de humildade e decidido que ia partir pra uma espécie de tudo ou nada com a Terra.

O mundo em que vivemos só existe porque conseguimos dobrar muitas das limitações naturais, o problema foi quando passamos a achar que não haveria mais limites, consideramos que, dominado o fogo que abria todas as alas, tínhamos ficado invencíveis. 

O que ocorre no sul reforça que não somos adversários capazes de derrotar as forças da natureza. Fenômenos que se espalham com maior frequência e mais intensidade pelo planeta — degelo nos polos, enchentes, secas — mostram que muitas de nossas vitórias traziam derrotas embutidas.

É duro admitir que não somos tão bons e tão poderosos assim. As imagens de cidades devastadas no Rio Grande do Sul provam que nossas obras, tão fortes, tão sólidas e bem construídas, são incapazes de resistir à força da água.

A vida é feita de escolhas e de negociações. Na maior parte das vezes, não conseguimos impor nossas vontades, precisamos conversar, buscar algum consenso, é sempre bom reconhecer a força de quem está do outro lado.

A experiência de cada um de nós mostra que não dá pra ficarmos dando murros em ponta de faca. As feridas que agora sangram nas mãos de todos, especialmente nas mãos dos gaúchos, revelam que não adianta esperar a cicatrização de tantas feridas para, logo depois, voltarmos ao mesmo tipo de ataque, retornarmos à batalha que sabemos perdida.

Essa mudança é importante para todos, mas, principalmente, para os mais pobres. As reportagens de TV sobre vítimas da enchente têm mostrado uma série de homens e mulheres negros, o que chega a espantar os que não conhecem bem o estado, mais identificado como de população branca.

A percepção sobre a composição étnica do Rio Grande do Sul faz sentido, segundo o último censo, 78,4% dos que moram por lá se disseram brancos (14,7%, pardos; 6,5%, pretos). Mas a quantidade de negros entre vítimas indica que, como quase sempre, os mais pobres são os mais afetados por tragédias. São também os menos têm para onde ir; os mais interessados, portanto, numa mudança na maneira de encarar o problema.

Assim como moradores do Alasca não brigam com o gelo, nós, brasileiros, precisamos entender que é preciso respeitar limites da natureza. Não é simples, mas sai menos doloroso e mais barato do que deixar que ela venha cobrar a conta — nessas horas, ela costuma bater com força na porta, chega a arrombá-la.