A fé nas fake news fez com que integrantes da 14a Brigada de Infantaria Motorizada do Exército tivessem em Canoas (RS) sua Batalha de Itararé e personificassem o Corneteiro Lopes, herói improvável da independência na Bahia.
Domingo, vídeos que circulavam em redes sociais anunciaram que o rompimento de um dique inundaria parte da cidade, já afetada pelas enchentes. Antes de checarem a veracidade do que os terroristas virtuais propagavam, militares determinaram que fosse evacuado o bairro de Mathias Velho.
Constatado o erro, o Exército pediu desculpas, afastou os militares envolvidos e determinou a abertura de investigação. As medidas são corretas, mas insuficientes.
O fato de oficiais darem crédito a informações suspeitas indica o tamanho do problema. Ainda bem que ninguém inventou uma suposta invasão do Brasil pela Argentina: vai que algum dos nossos generais confiasse nos tios do zap e mandasse bombardear Buenos Aires.
A incompetência, o despreparo e a irresponsabilidade demonstrados em Canoas indicam o quanto integrantes das Forças Armadas passaram a crer em mentiras que, particularmente desde 2018, procuram sabotar as instituições brasileiras. O episório ajuda a explicar a adesão de tanta gente, civis e militares, à trama golpista bolsonarista. Fake news trabalham num campo parecido com o da fé: precisam de pessoas que queiram acreditar em supostas verdades.
Não é difícil encontrar motivos para fazer oposição à esquerda em geral ou ao PT em particular. Mas quem cria e dissemina informações fradulentas sabe que é preciso estimular o ódio, criar fantasias que explorem medos e gerem pavor.
É quase inacreditável que as FFAA, alvo de tantas fake news relacionadas ao atendimento a vítimas da tragédia gaúcha, tenham dado fé a algo tão grave quanto o rompimento de um dique, que não tenham tido o mínimo cuidado de apurar a história (Canoas já fora vítima de outras mentiras relacionadas à chuva).
O consumo da droga da mentira parece ter deixado tortos cérebros até entre militares. Quem acredita em kit gay, em distribuição de mamadeiras com bico em forma de pênis e em político que veste camiseta que classifica Jesus de travesti é capaz de crer em qualquer besteira. Desde que a lorota seja compatível com seu repertório ideológico ou com seus medos.
A tradição pacífica do país e o desvio de rota gerado pelo golpe da Proclamação da República abriram as portas para a participação militar na vida política-institucional e geraram um certo desleixo com a função principal das FFAA.
O namoro com o golpismo e o pânico diante da notícia falsa de inundação mostram a necessidade de a sociedade civil quebrar o dique que a separa dos militares. A reformulação dos processos de formação dos oficiais e a lógica de remuneração da carreira — o que inclui aposentadorias desproporcionais às oferecidas aos servidores civis — precisam ser discutidas por quem paga a conta.
Em tempo: 1. Prevista para ser um confronto sangrento entre tropas legalistas e os rebeldes que deflagraram a Revolução de 1930, a batalha que ocorreria na cidade paulista de Itararé acabou não ocorrendo. Comandantes das duas tropas acharam por bem deixar a briga de lado.
2. O cabo corneteiro Luís Lopes foi aquele que, numa das batalhas contra o poderoso exército português na Bahia, recebeu ordem de tocar retirada. Mas ele se confundiu, e tocou "Avançar cavalaria, à degola". Diante da sentença, o comandante luso imaginou o pior, e achou prudente preservar os pescoços dele e de seus soldados, e tratou de recuar — gol do Brasil.
O equívoco do Corneteiro Lopes ajudou o país a ficar independente, a cornetada de Canoas por pouco não causa pânico e aumenta a tragédia.