Câmeras da PM para selfies
Ao afrouxar as normas de utilização de câmeras corporais por policiais militares, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), lança sobre os integrantes da corporação a suspeita de que todos são potencialmente corruptos e/ou assassinos.
Longe de representar uma medida de respeito aos PMs, a mudança nas regras ofende os integrantes da categoria, homens e mulheres que arriscam suas vidas em nome da sociedade. Reforça a ideia de que policiais não são profissionais dedicados a garantir a segurança pública, mas feitores ou capatazes encarregados de matar supostos criminosos ou rivais em transações suspeitas.
O desespero da população em relação à criminalidade é mais do que compreensível — todos temos medo de assaltos, ninguém quer ficar na mira de bandidos. Mas a insistência na lógica de que polícia boa é polícia que mata apenas revela o oportunismo dos tantos políticos que insistem em reforçar o pavor e em apresentar soluções supostamente fáceis. Se violência fosse efetiva no combate à criminalidade, o Brasil seria um paraíso, um daqueles lugares em que poderíamos dormir de janelas abertas e sem grades.
Não custa repetir o mantra: polícia com autorização para matar quem bem entender é polícia corrupta; com frequência, parceira da criminalidade que diz combater. Não é razoável que um profissional, seja qual for sua atividade, possa trabalhar sem controle. Todos estamos sujeitos a algum tipo de vigilância, do chefe, do patrão, do Ministério Público, do eleitor — e da própria polícia.
Isso vale pra todo mundo: para bancários, médicos, pedreiros, caixas de supermercado, estoquistas, médicos, enfermeiros, serventes, motoristas de ônibus, pilotos de avião, jornalistas, jornaleiros, mecânicos, apontadores do jogo do bicho; vale para civis e militares.
E precisa valer para os agentes da lei. Estes, por trabalharem armados e por representarem a mão vigilante e repressora da sociedade, não podem agir como se fossem donos do direito à vida de cada cidadão. As incontáveis imagens de abusos policiais, comuns desde a popularização dos celulares com câmeras, mostram uma pequena parte do que ocorre em favelas e periferias — e nem de longe cometo a injustiça de fazer uma generalização.
A implantação das câmeras fez despencar, entre 2019 e 2022, o número de mortos pela polícia paulista: uma queda de 62,7%, percentual que chegou a 76,2% nos batalhões que passaram a usar o equipamento. E houve diminuição expressiva também no número de policiais mortos no horário de trabalho, de 14 para seis.
As imagens são importantes para reforçar a obtenção de provas contra bandidos. São decisivas importantes para evitar que policiais sejam injustamente acusados de abusos ou crimes.
A violência policial gera ainda mais problemas. A chacina do Carandiru gerou o PCC. O assassinato em massa cometido por policiais mostrou aos presos que eles precisavam se organizar para que pudessem se proteger.
O crescimento e a sofisticação desta e de outras organizações criminosas mostram que o combate efetivo ao crime passa longe de matanças de bandidos. Este tipo de fato costuma servir apenas para dar a impressão de combate sem tréguas, quando, de um modo geral, sequer arranha a superfície das atividades que ameaçam a sociedade.
O crime organizado não ocorre apesar do Estado, mas dentro de sua estrutura. É o que mostram fatos recentes, como as ligações do PCC com políticos e empresa de transporte e a teia de cumplicidades que mostrou a cara no assassinato da vereadora Marielle Franco.
A transparência garante um mínimo de controle social sobre atividades exercidas por agentes públicos, políticos ou policiais. Da mesma forma que exigimos cada vez mais informações sobre o que fazem e deixam de fazer aqueles que são eleitos, seria absurdo delegar plenos poderes a um grupo de profissionais — eles não são melhores ou piores que nenhum de nós.
Ao decidir que policiais terão o direito de escolher o momento de ligar as câmeras, o governo de São Paulo, além de lançar a tal nuvem de desconfiança sobre policiais, desmoraliza o equipamento, assim transformado num adorno inútil. Servirá apenas para produzir imagens para as redes sociais.