Por: Fernando Molica

A PEC que deve morrer na praia

Senador Flávio Bolsonaro | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Acostumado a surfar nas ondas de projetos de apelo popular que contrariam teses da esquerda, o bolsonarismo corre o risco de desabar da prancha com o projeto que facilita a restrição de acesso a praias.

O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator da Proposta de Emenda Constitucional 3/2022, está na mira dos que o acusam de tentar viabilizar a privatização de trechos do nosso litoral.

Ele nega que isso possa ocorrer com a aprovação da medida, mas a proposta já passou a ser conhecida como PEC da Privatização das Praias. Experiente na amplificação de conceitos como kit-gay e banheiros unissex em escolas, o bolsonarismo, agora, é que tem o ônus de tentar explicar que a situação não é bem assim.

Políticos sabem que os piores escândalos não são necessariamente os que movimentam mais dinheiro, mas os que são facilmente entendidos pela população. Não é fácil compreender histórias de remessa ilegal de dinheiro via contas CC5 ou licitações direcionadas por meio de pegadinhas colocadas em editais. Mas todo mundo saca o que está em jogo quando alguém esconde dinheiro na cueca ou é acusado de bater na mulher. No caso da PEC, a história da privatização ganhou as redes.

Ao longo dos últimos anos, bolsonaristas souberam, como nenhum outro grupo político, ressaltar posições da esquerda rejeitadas por boa parte da população, como as ligadas ao combate à violência ou à chamada agenda de costumes. Não vacilaram também em espalhar mentiras ou versões deformadas de iniciativas ou declarações de adversários.

Demonstraram grande habilidade ao adaptarem o discurso corporativista-militar de Jair Bolsonaro à tsunami conservadora que, ancorada no avanço evangélico, passou a varrer o país. Não vacilaram em dar viés de modernidade a teses que justificavam a derrubada de florestas e o avanço sobre territórios indígenas.

Levada ao chão depois de caixotes sucessivos gerados pelas acusações de corrupção e pela crise econômica do governo Dilma Rousseff, a esquerda demonstra dificuldades até para defender teses de sua cartilha, como ficou comprovado nas votações que restringiram saídas temporárias de presos.

Assim, aprovada com facilidade na Câmara em 2022, a PEC 3/2022 parecia seguir um caminho tranquilo no Senado. Navegava embalada pela justificativa de que apenas acabaria com a cobrança do laudêmio e do foro de terras da União em áreas de marinha, ou seja, vizinhas ao mar (nada a ver com a Marinha do Brasil). Facilitaria muito a possibilidade de detentores do direito de uso desses imóveis passassem a ser seus proprietários.

Mas no rastro da discussão estimulada pela tragédia gaúcha, ambientalistas frisaram que a mudança diminuiria a proteção do litoral. E, como frisaram deputados de esquerda em 2022, a possibilidade de venda de terrenos abriria margem para o controle de acesso a praias por parte de empreendimentos imobiliários/hoteleiros. Essas áreas não deixariam de ser públicas, o problema seria conseguir chegar até elas.

As repetidas declarações de Jair Bolsonaro favoráveis à criação de uma "Cancún brasileira" em Angra dos Reis e a participação do amigão Neymar em empreendimento no Nordeste que alardeia acesso exclusivo ao mar fecharam o quebra-cabeças. Não dava pra não ligar os pontos: a PEC ameaça invadir nossas praias.

O Congresso já demonstrou não ter medo de tomar medidas absurdas, mas costuma ser cauteloso na hora em que percebe o risco de cair de cara na areia. Não dá pra apostar, mas, ao que tudo indica, a tal PEC será afogada.