Por: Fernando Molica

Tornozeleiras não são enfeites

Fuga de envolvidos mostra fragilidade do monitoramento determinado pelo STF. | Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

Não basta prender os condenados ou investigados pela intentona do 8 de Janeiro que descupriram ordens judiciais. É preciso apurar as falhas, omissões ou mesmo cumplicidades que permitiram que 208 pessoas ignorassem decisões do Supremo Tribunal Federal, algumas fugiram do país.

A operação para prender os fugitivos mostrou que  tornozeleiras eletrônicas viraram acessórios quase tão inúteis quanto as câmeras que o governo paulista quer colocar nos PMs. Outras medidas cautelares também se revelaram inservíveis.

O descaso dos órgãos de controle explica a demora na expedição de mandados de prisão para pessoas que, em tese, estavam sendo monitoradas eletronicamente e/ou tinham que cumprir obrigações como comparecer regularmente a um determinado órgão judicial.

A vigilância da execução das medidas cautelares — no caso, determinadas pelo STF — cabe às varas de execução penal dos estados ou do Distrito Federal. No mês passado, diante de notícias de fuga de condenados para o exterior, a coluna Bastidores, do Correio da Manhã, perguntou à Procuradoria-Geral da República como era feito esse controle.

A PGR respondeu que os "eventuais descumprimentos" das determinações eram comunicados ao juízo (o STF), a quem cabia notificar o Ministério Público.  Ou seja, o acúmulo de foragidos — 208, vale repetir — indica que houve muitos erros nesse processo. Um descaso que fez tabelinha com o sentimento de impunidade dos condenados ou acusados de participarem da mais grave ameaça à democracia ocorrida no país nas últimas décadas.

Não é razoável que varas de execuções penais e/ou integrantes do MP tenham demorado tanto para alertar o STF que tanta gente havia descartado tornozeleiras, ignorado suas obrigações ou tenham fugido do país. No dia 15 de maio, em resposta à coluna, a PGR comunicou que havia pedido "há pouco" a "inserção dos mandados de prisão na difusão vermelha da Interpol". 

A medida atingia oito pessoas — seis que haviam descumprido medidas cautelares e suspeitas de fuga e duas que teriam simplesmente cruzado a fronteira. Dias antes, veículos de imprensa tinham publicado que o número de pessoas que descumpriam as ordens do STF no caso da intentona de 8 de Janeiro chegava a 51.

O descontrole num fato de tamanha importância e repercussão levanta sérias questões sobre como se dá a vigilância dos milhares de outros condenados ou suspeitos monitorados eletronicamente. Segundo a edição de 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 91.362 presos (11% do total de encarcerados) usavam tornozeleiras no país.

No Estado do Rio, cerca de oito mil pessoas usam o mecanismo, rompido por 740 delas no ano passado. No território fluminense houve, em 2023, 1.175 registros de problemas no equipamento e casos de presos que ultrapassaram limites determinados pela Justiça.

A realidade social da grande maioria dos condenados brasileiros dificulta sua captura em caso de descumprimento de medidas restritivas. Favelas e loteamentos clandestinos funcionam como ótimos esconderijos e, em muitos casos, são dominados por quadrilhas de traficantes ou milicianos, o que complica a busca por presos.

Mas o perfil dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado é bem diferente. Esses condenados e denunciados são, de um modo geral, pessoas de classe média, que têm residência conhecida, advogados particulares. Seus movimentos seriam, em tese, mais facilmente monitorados.

A condição social da maioria dessas pessoas deveria ser um motivo a mais de atenção de quem tem a obrigação de vigiá-las. As telas que registram a movimentação de monitorados não podem ser equiparadas a vídeos games; tornozeleiras não são enfeites ou bijuterias.