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O divertido e jovem Machado de Assis

O jovem Machado de Assis | Foto: Reprodução

As mais que merecidas loas a Machado de Assis nem sempre ressaltam um aspecto fundamental do maior escritor da língua portuguesa: o cara é pra lá de divertido, um — perdão — sacana, na melhor acepção da palavra.

Por trás daquele sujeito elegante e aparentemente formal, fundador da Academia Brasileira de Letras, havia um grande gozador, alguém que, sou capaz de apostar, caía na gargalhada ao escrever. Ria de suas sacadas, da sociedade que tanto ironizava, ria até dos leitores que iria supreender.

Negro, filho de um pintor e de uma lavadeira, Machado fez com a literatura brasileira mais ou menos o que, muitas décadas depois, jogadores como Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos e Romário fariam com o futebol. Ele inventou uma nova forma de escrever, de lidar com a língua. Deu cadência e molejo a um jogo ainda preso a um formato duro, rígido.

Com os craques citados, Machado matou no peito a bola do idioma, com ela fez embaixadinhas e incontáveis gols de placa — até hoje dribla leitores; como Mané, nos faz de João. Tratou a gramática de você, e não de vossa excelência. 

Lembro que, na adolescência, cheguei a "Dom Casmurro" cheio de reticências, com o mesmo pé atrás com que encarava escritores brasileiros do século 19, cheios de pompas, que não escondiam a sisudez nem mesmo quando tentavam simular uma certa informalidade — não conseguiam deixar a casaca de lado. 

E aí descubro um autor cheio de graça, que parecia escrever de bermudas e chinelos. Uma cara que,  parecendo mirar em colegas de ofício, diz que um personagem "amava os superlativos". Isto, como "modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, serviria a prolongar as frases". Uma definição que até hoje deve servir de carapuça para muita gente.

Mais, ironizava o próprio personagem/narrador, interrompia a narrativa para se dirigir ao leitor/leitora. Não temia em quebrar a tensão da história contada. Ele nos lembrava que aquele texto é um livro de ficção, que apenas finge narrar fatos reais. É como um amigo que, num bar, em meio a uma narrativa, dá uma cutucada no nosso ombro ou segura o braço do garçom e diz algo como "Rapaz, e aí você não vai acreditar o que aconteceu." Literatura, assim como futebol, é um jogo.

Em "Memórias póstumas de Brás Cubas" — o livro que supreendeu e encantou a tal tiktoker americana —, Machado brinca com a morte, não dá tréguas ao protagonista, um inútil, típico representante de uma sociedade escravocrata. Um personagem que narra sem constrangimento uma forma de tortura e humilhação que considerava brincadeira de infância: fazer de cavalo o escravizado Prudêncio, um "moleque de casa": "(...) eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia (...)."

Usa da mesma ironia para, em "Esaú e Jacó", tratar do título de nobreza que um casal rico acabara de receber do imperador: "Os próprios escravos pareciam receber uma parcela da liberdade e condecoravam-se com ela: 'Nhã Baronesa!' exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas com os dedos: 'Gente, quem é esta crioula? Sou escrava de Nhã Baronesa!'." 

Neste mesmo romance, Machado não perdoa o sujeito que, após pedir uma esmola para as almas do purgatório, recebe uma polpuda contribuição — que trata de embolsar: afinal, ele "também tinha alma".  Em seus livros, Machado promove uma espécie de tiroteio contra a hipocrisia, faz como o artilheiro que ri depois da jogada de mestre que acaba de fazer:

"Pobre Capponi! Andando o pé esquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade"; "(...) um ódio comum é o que mais liga duas pessoas", "(...) a esperança, que é a meninice do mundo", "E ambos pararam a distância, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana" — frases de "Esaú e Jacó".  

Por último, a clássica tirada de "Brás Cubas": "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos." Machado (1839-1908), Bruxo do Cosme Velho, só não envelheceu bem porque continua muito jovem.