Por: Fernando Molica

Governo não pode fugir da briga

Lula cobrará votos no Congresso dos ministros do Centrão | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Foi preciso que uma parcela importante da sociedade se mobilizasse contra o projeto que amplia punições ao aborto para que o governo descobrisse que tem o direito e a obrigação de não fugir da raia em temas delicados.

O avanço do conservadorismo é evidente no Brasil e em diversas partes do mundo. Pautas tradicionais da esquerda perderam espaço para reivindicações que, embaladas pelo discurso religioso, ameaçam direitos conquistados depois de muita briga.

A eleição de 2022 foi dura, o bolsonarismo está vivo; o avanço pela direita minou até mesmo pontos da cartilha econômica da esquerda, como a defesa de estatizações e de legislação trabalhista mais rígida.

No chamado campo de costumes, a situação é ainda mais delicada, muitos setores clamam pela redução de direitos individuais, como no caso da já restrita norma sobre o aborto.

Mas o medo de remar contra a corrente não pode fazer com que um governo à esquerda abra mão de princípios básicos, como no caso de tentar impedir o avanço do projeto que enquadra como homicídio a interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, mesmo no caso de estupro.

Líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), chegou a dizer que a proposta e a que restringe as delações premiadas não eram de "interesse" do Planalto, uma desculpa fajuta. Os temas podem até não ser do interesse pessoal do presidente Lula, mas são muito relevantes para os cidadãos.

Integrantes do governo e o próprio Lula só entraram na discussão relacionada ao aborto depois da realização de manifestações nas ruas, da veiculação de diversas opiniões contrárias nos meios de comunicação e de uma infinidade de posts em redes sociais.

A demora não se justifica e ressalta que governos não têm o direito de subir no muro, não podem ficar calados. O caso revela também que, mesmo acuado no Congresso e rejeitado por parcela importante da população, Lula tem força para defender pontos de vista importantes, ainda que vistos com reserva por muita gente.

No caso específico do projeto de lei sobre o aborto, foi preciso que o presidente fosse empurrado para a briga; percebeu, então, que há vida fora dos plenários do Congresso e da histeria de redes sociais. Além do mais, políticos não podem fugir do debate, da possibilidade de enfrentamento e de convencimento — a predominância de muitos dos pontos de vista da extrema direita foi conquistada ao longo de muitos anos de batalha.

As mudanças na opinião pública e a autonomia conquistada pelo Congresso diminiram o poder de governos, o mercado de compra e venda de votos na Câmara e no Senado mudou, parlamentares já não dependem tanto assim de benesses vindas do Planalto e dos ministérios.

Diferentemente do que ocorreu em seus outros governos, Lula não consegue arrastar no vácuo do governo deputados sem definição ideológica mais clara, que estão lá para obter vantagens políticas e/ou pessoais. Homens e mulheres que surfam na hoje popular onda conservadora da mesma forma que, há 20 anos, pegaram carona na esquerda.

Negociar é diferente de uma rendição. O governo tem a obrigação de não fugir do debate; não pode deixar de alertar a sociedade também para o absurdo projeto do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que, na direção contrária de toda a experiência internacional, criminaliza a posse de qualquer quantidade de droga. Vai na mesma linha da proposta do aborto, equipara usuário a traficante. Que o governo não espere as ruas para se manifestar.