Por: Fernando Molica

Chico, 80: parabéns pra todos nós

Chico Buarque, o homem solidário. | Foto: Divulgação

Hoje, 19 de junho de 2024, Chico Buarque faz 80 anos. Estamos todos de parabéns, gerações e gerações vão nos invejar por isso. Não é pouco ter o privilégio de ser contemporâneo do maior compositor brasileiro, melhor tradutor de nossos amores, desejos, esperanças, angústias, sonhos, revoltas, expectativas, frustrações — e por aí vai.

Artistas atuam às vezes como acupunturistas, aplicam agulhas em pontos que, aparentemente, nada têm a ver com a origem dos  nossos males. Provocam dor, alertam e ressignificam histórias de vida. Foi isso que Chico fez ao traduzir, de maneira tão simples, certeira e cruel, a dor de uma separação: "Como, se na desordem do armário embutido/ Meu paletó enlaça o teu vestido/ E o meu sapato inda pisa no teu".("Eu te amo", composta com Tom Jobim).

Ele também nos consolou ao mostrar que, sim, o amor é capaz de resistir ao tempo e vencer a morte, mesmo sem qualquer perspectiva religiosa. A certeza aqui é outra, palpável, ao alcance de amantes que ainda virão, que "Se amarão sem saber/ Com o amor que eu um dia/ Deixei pra você". Confesso me surpreender e me emocionar cada vez que ouço essa canção, leio ou reproduzo seus versos: como assim, como esse cara fez isso? 

Pior é a impressão que ele passa de fazer isso tudo como quem não quer nada. Claro que toda sua obra como compositor e escritor é fruto de muito trabalho, mas o sujeito, até pela ausência de marra, dá a impressão de que cria como quem escolhe laranjas na feira ou joga uma pelada — o assovio do arranjo da citada "Futuros amantes" reforça essa idéia.

Não dá pra falar em Chico Buarque sem tratar de seu papel na ditadura, de como sua voz serviu de alento e alimentou a perspectiva de resistência, acenou com um amanhã que viria ser outro dia. Perseguido, censurado, não desistiu, continuou a produzir, a gravar. Há pouco, recentemente, diante da ascensão de uma nova versão das trevas, tratou de reocupar seu lugar e de, mais uma vez, projetar tempos melhores. Enquanto muitos recuperavam o "Apesar de você" — hino tristemente reatualizado —, ele propunha um samba para "espantar o tempo feio/ Para remediar o estrago".

A política na obra de Chico Buarque vai muito além de uma determinada conjuntura. Desde "Pedro pedreiro" que ele constrói um repertório parceiro dos injustiçados, dos que mais sofrem. Em meio ao milagre brasileiro, olhou para o alto e não viu os prédios que ilustravam e afirmavam o poder, mas o operário que tropeçou no céu como se ouvisse música. Décadas depois, falou com carinho da tecelã que, com o namorado, fiava nas malhas do ventre o homem de amanhã. Exaltou Geni, vocalizou a tristeza de mulheres que perderam seus guris, nos colocou na carona e nos delírios de um pivete desvairado.  

Encerrou seus mais recentes CDs/álbuns de inéditas com duas canções que rasgam o peito de qualquer brasileiro de boa vontade, "Sinhá" (composta com João Bosco) e "Caravanas". Ambas são complementares: a primeira fala do nosso passado escravocrata; a segunda, das consequências dessa nossa maior tragédia.

Uma trata do escravizado que tem os olhos furados por ter visto a nudez de sinhá; outra, dos jovens negros que assustam  "A gente ordeira e virtuosa" — entre essas pessoas, arrisco dizer, está o protagonista do conto  "Meu tio", da coletânea "Anos de chumbo" (Companhia das Letras), que Chico lançou em  2021. Ao falar de abuso sexual em família, a narrativa ilumina o debate sobre o projeto de lei que criminaliza ainda mais o aborto.

Seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, criou o conceito de "homem cordial" para definir o brasileiro, mais ligado à emoção (cordial vem de coração). Já seu filho merece ser chamado de homem solidário, que nunca nos faltou e que torna nossas vidas mais suportáveis, bonitas, líricas, surpreendentes e amorosas. Parabéns pra todos nós, herdeiros sararás que carregamos a sina de   descendermos de senhores de engenho e de escravizados. Parabéns pra você, Chico — muito obrigado.