Por: Fernando Molica

Negros, mulheres e amigos

Lula desembarca no Rio nessa quarta-feira | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

A desculpa usada pelo presidente Lula para justificar a escassez de negros e mulheres em seu governo lembra a frase do ex-ministro da Saúde Adib Jatene (1929-2014) ao diagnosticar que o problema do pobre não é ser pobre, mas só ter amigo pobre: não tem amigos que tenham acesso ao poder, que o ajudem a criar projetos. 

É mais ou menos por aí que acontece com setores tradicionalmente excluídos do poder, como mulheres e negros. Lula acerta ao dizer que, historicamente, esses dois setores foram sub-representados, o que dificulta processos de ascensão, de reconhecimento profissional e, mesmo, de criação de relações políticas e institucionais.

Mas é para isso que existem ou deveriam existir governos. Não dá pra contar que uma suposta mão invisível da justiça social e a mão visível do Centrão deem conta do recado.  Mecanismos como a criação de cotas em universidades e em concursos públicos são decisivos, mas não suficientes. 

Não é razoável supor que, entre tantos negros e mulheres, o presidente da República não consiga escolher pessoas tão boas — ou, dependendo do caso, tão ruins — quanto os homens brancos que dominam o seu primeiro escalão; cidadãos e cidadãs que preencham até mesmo a necessidade de representação partidária.

É necessário que governos, empresas e a sociedade como um todo interfiram de forma direta nesse processo. Como disse Jatene, pessoas de setores tradicionalmente vítimas de preconceito e de invisibilidade não têm amigos. Não são como aqueles que, desde a creche e do parquinho, começam a fazer seu networking, a criar redes de relacionamento que ajudarão a asfaltar seus caminhos profissionais.

O problema é fazer com que os filhos e filhas da babá tenham oportunidades semelhantes àquelas desfrutadas pelos bebês que as mães deles, vestidas de branco, levam para passear nas áreas mais nobres da cidade.

Ainda hoje, 136 anos depois da Abolição, há muitos menos negros do que brancos formados em universidades, um funil ainda mais apertado em casos de profissões de nível superior mais seletivas, que cobram do estudante uma dedicação quase integral, como medicina e engenharia. Mas esses profissionais existem, só que não têm amigos como seus colegas brancos.

Pela própria história, Lula conhece muito bem as dificuldades colocadas no caminho dos mais pobres. Graças ao seu empenho e à sua capacidade, ele conseguiu superar tantas barreiras, mas sabe que seu caso é excepcional, não pode ser tomado como exemplo para a maioria.

Quantos de seus ex-companheiros da Villares e de assembleias do sindicato de São Bernardo do Campo — que, na época, representavam uma elite do operariado — conseguiram escapar de um destino mais ou menos previsível? 

O caso da escolha de dois homens brancos para o Supremo Tribunal Federal eliminou qualquer argumento ligado à sempre questionável meritocracia. Não faltaram candidatas negras capazes de preencherem as vagas, mulheres que, aposto, não precisariam explicar seus votos uma semana depois de anunciá-los em plenário.

 Nomear mais mulheres e negros — e homossexuais, indígenas — não representa apenas uma correção de injustiças. Como demonstram tantas grandes empresas, a diversidade é lucrativa em todos os sentidos, permite que instituições públicas e privadas atentem para pontos até então desconhecidos, viabiliza políticas sociais e amplia mercados.

E aí, volto ao caso de Lula, que cumpriu a profecia da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977): como ela anunciou, o combate à fome só seria encarado de maneira decisiva quando o país tivesse um presidente que não tenha tido o que comer. Há muitas outras fomes que precisam ser saciadas.