Há muitos anos que usuários de crack exercem um direito que nem mesmo o Supremo Tribunal Federal reconheceu: consomem nas ruas uma droga derivada da cocaína, muito danosa que a maconha. A decisão do STF de descriminalizar o porte para uso pessoal de 40 gramas da cannabis não autoriza seu uso em vias públicas.
As cracolândias reforçam a hipocrisia que permeia a discussão sobre substâncias que, diferentemente do que ocorre com o álcool e com o tabaco, são classificadas de ilícitas. Até por suas características peculiares — que incluem grau de degradação e violência —, esses homens e mulheres consumidores de crack conseguiram, na prática, uma espécie de habeas corpus preventivo.
Até a polícia evita se meter com eles, sabe da confusão que é conduzi-los a uma delegacia. Adictos sob o efeito do crack tendem a reagir de maneira agressiva, difícil de ser controlada: para evitar problemas, policiais acham mais prudente não provocar um conflito.
E aí, temos uma contradição: um liberou geral para o crack e uma autorização cheia de asteriscos e cuidados para a posse de uma droga de consumo permitido em diversos países. A maconha tem consumo muito mais restrito que o álcool — droga livremente consumida e anunciada na TV associada a momentos de alegria e de prazer.
Reproduzo a seguir parágrafo de artigo que publiquei aqui mesmo há quase um ano:
"Em 2021, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 400,3 mil atendimentos a pessoas com transtornos mentais e de comportamento devido ao uso de drogas: o álcool foi responsável por 39% dos casos, 159,6 mil. Em segundo lugar, a cocaína (8%). Dos atendimentos, 37% foram gerados por consumo de diversas drogas ao mesmo tempo e por substâncias não listadas separadamente. Esses dados não mostram o total de dependentes, apenas os que precisaram de ajuda médica."
Não dá para enfrentar um problema com base em preconceitos. O Brasil, assim como a grande maioria dos países, aceita e estimula o uso de algumas drogas que afetam a consciência e são capazes de gerar dependência — e proíbe outras tantas. Quem tem parentes e amigos alcoólatras, pessoas incapazes de consumir a droga com moderação, sabe do tamanho do problema.
Nem de longe cabe pensar em repetir a desastrada experiência americana de probir bebidas alcoólicas. A Lei Seca, que durou de 1920 a 1933, apenas estimulou organizações criminosas e o consumo clandestino do que antes poderia ser comprado na esquina.
Num mundo ideal, ninguém precisaria recorrer a produtos químicos para gerar prazer, aumentar alegria ou aplacar dores, mas não somos perfeitos, e nunca ouvi falar de civilização que tenha deixado de desenvolver alguma substância do gênero.
O combate à desinformação relacionada às drogas passa também pela superação do bom-mocismo de dizer que todos os consumidores dessas substâncias são pessoas que precisam de ajuda, de tratamento. Besteira. Há, sim, casos de dependência que precisam de tratamento. Mas, assim como no caso do álcool, a grande maioria tem vida normal e faz uso recreativo dessas substâncias, algo admitido em países como Canadá, Portugal e em diversos estados americanos. Os que defendem a liberdade até de mentir e de caluniar cerram fileiras contra o direito de um adulto fazer o que bem entende com seu corpo, desde que, claro, não prejudique terceiros.
A decisão do STF vai provocar muitos discursos inflamados, apocalípticos e oportunistas, que vão tratar de explorar medos e preconceitos comuns e, importante ressaltar, muitas vezes justificáveis. Mas não custa ter a expectativa de que a bola seja baixada, que a sociedade tenha maturidade para tratar a vida como ela é, e não como diz que gostaria que fosse.