A guerra que mata inocentes

Apostar na receita da violência policial é, na melhor das hipóteses, recorrer ao populismo do congelamento de preços para segurança inflação.

Por Fernando Molica

Deborah tinha 27 anos e deixou uma filha de sete meses.

Todos que estimulam policiais a promover matanças são corresponsáveis pelas mortes de Deborah Boas Vilas Pires da Silva e de José Carlos da Silva Miranda — baleados na Linha Amarela, no Rio —  e dos PMs Rafael Wolfgramm Dias e Jorge Galdino Cruz, atingidos em operação no complexo da Maré. Vão para conta deles também os tiros levados pela estudante e bailarina Ana Beatriz Barcelos do Nascimento, de 13 anos, internada num hospital.

Eles e elas foram vítimas de confrontos entre policiais e bandidos que, ao longo de décadas, foram transformados na principal forma de aplicação de uma política de segurança alimentada pelo ódio, pelo oportunismo, pela irracionalidade e pelo descaso com a vida humana, principalmente com a da população mais pobre e negra. Uma lógica exaltada por políticos, influenciadores e dos tais cidadãos de bem que estão longe do cenário dos confrontos.

Há muitos anos que estudiosos da segurança pública que pregam o básico, um modelo de segurança baseado na investigação e no respeito às leis, são chamados de defensores de bandidos, de cúmplices de marginais. Mas as balas que matam os fora da lei também atingem inocentes, a quantidade de vítimas é proporcional ao número de tiros disparados. No Brasil, a expressão direitos humanos — os direitos de cada um de nós — ganhou conotação pejorativa. É permitido defender os direitos dos animais, mas não os de seres humanos.

É razoável que, assustada, acuada, presa em casas e apartamentos gradeados, tolhida do direito de ir de vir pela ação de bandidos, boa parte da população defenda médidas drásticas, a história do bandido-bom-bandido-morto. Mas é absurdo que governantes e políticos não busquem a implantação de mecanismos como controle de entrada e circulação de armas e de munição e o estabelecimento de medidas rígidas para punir cumplicidades não apenas no aparelho policial, mas em todo a estrutura do Estado.

Eles sabem que polícia assassina é sinônimo de polícia corrupta — a licença para matar traz embutida a para roubar. Apostar na receita da violência policial é, na melhor das hipóteses, recorrer ao populismo do congelamento de preços para segurar a inflação.

A denúncia contra os irmãos Brazão, acusados de ligação com milicianos e de mandarem matar a vereadora Marielle Franco, mostra o tamanho da associação entre política e criminalidade. A próspera carreira de ambos reforça que eles só cresceram graças a acordos com outros políticos, todos sabedores da fama dos dois: então deputado estadual, Domingos recebeu 61 dos 70 votos possíveis para chegar ao Tribunal de Contas do Estado; o deputado federal Chiquinho integrava, até outro dia, o primeiro escalão da prefeitura do Rio.

Entoado em coro por muita gente, o grito de "Mata!" ecoa nos ouvidos de governantes, vira cobrança nos ombros de autoridades de segurança e serve de estímulo para policiais que enfrentam bandidos violentos, donos de armas de guerra. O apelo à barbárie é tamanho que faz com que policiais se esqueçam que só podem atirar para defender a própria vida e a de terceiros — é o que diz a lei.

E tome de tiroteiros no meio de vias públicas, como o que causou as mortes de Deborah, de 27 anos, e de José Carlos, 64, resultado da impulsividade de policiais que ignoraram regras básicas e tentaram impedir assaltantes armados que tentavam roubar uma moto: polícia é para garantir a segurança do cidadão, não para colocá-lo em risco. Esses PMs têm que ser punidos.

Integrantes do Bope, Rafael e Jorge, foram treinados para atuar nessa guerra. Suas mortes numa das repetidas e quase sempre inúteis operações em favelas são baixas previsíveis, dificilmente vão gerar alguma reflexão sobre a necessidade de implantação de uma política de segurança mais eficiente e menos sanguinária. A guerra tende a continuar matando pobres e inocentes.